Paris por um triz – Voyeur num funeral me esfregando na musa BB

Eu morava na Maison du Brésil, na Cité Universitaire. O correspondente do JB Luiz Edgar de Andrade me deu a dica na manhã da sexta-feira, 16 de dezembro de 1960: “Às onze horas, missa de corpo presente de Vera Amado Clouzot, na igreja Saint-Pierre-de-Chaillot.” Imediatamente peguei o metrô para a Avenue Marceau, uma daquelas vias monumentais que se irradiam do Arco do Triunfo, na Étoile.

Filha do diplomata Gilberto Amado, Vera, 48 anos, virou atriz por acaso e casou com o famoso cineasta francês Henri-Georges Clouzot. Fez três filmes sob sua direção: O salário do medo (1953), As diabólicas (1955) e Os espiões (1957). Nos dois primeiros ela morre, no terceiro faz o papel de uma muda – a escolha dos papeis não chegava a ser uma declaração de amor do marido. Pouco antes de completar 47 anos, o coração de Vera explodiu. Quando o cardiologista anunciou que tinha os dias contados, Clouzot chegou a propor-lhe um pacto suicida.

A igreja estava cheia de celebridades. Num jornal do dia seguinte, saí na primeira página a poucos metros de Brigitte Bardot e de Françoise Arnoul, minhas musas dos filmes franceses no Cine Marabá, em Curitiba. O semanário ilustrado Noir et Blanc publicou uma página inteira: “AUX OBSÈQUES DE VERA CLOUZOT LES COMÉDIENS NE JOUAINT PLUS.” Numa das seis fotos, eu apareço atrás de Daniel Gelin, o grande ator que, depois do Último Tango, ficaria conhecido como “o pai da Maria Schneider.”

O corpo de Vera ficou no alto de um catafalco perto do altar, coberto por uma montanha de coroas de flores. Naquele ambiente santificado e solene, estou respirando o mesmo metro cúbico de minhas musas… De repente, sou empurrado pela massa e me vejo cara a cara com o monstro sagrado do cinema, Henri-Georges Clouzot, que estapeava seus atores para lhes arrancar a interpretação perfeita – naquele momento um homem em profunda dor pela perda da mulher.

Com os olhos marejados, Clouzot coloca em minha mão um aspersor de água benta, com o qual devo lançar algumas gotas sobre o corpo da defunta, eu repito o que vi fazer Charles Vanel, que veio à minha frente na fila dos cumprimentos. Clouzot agradece minha solidariedade, aperta-me num abraço forte, como se eu fosse seu amigo há décadas.

Olho então bem fundo nos seus olhos e vejo ali uma culpa transcendental. Lembro o enredo de Les diaboliques: o marido trama com a amante um ardil para levar a mulher – cardiopata, como Vera – a sofrer uma pressão que seu coração não irá suportar. O crime perfeito, por causas naturais. Na minha fantasia maldosa, decido que Clouzot foi o culpado da morte de Vera. Coitado dele, se arrastaria por mais 17 anos até morrer aos 69, depois de vários ataques do coração.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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