Já me imaginava rica de tanto vender dobraduras do personagem
Minha filha pediu de presente um boneco Pikachu que fala. O boneco grita “PICA, PICA, PICA” sem parar. É isso mesmo? Segundo a atendente Selma, da Ri Happy, a maldade estava apenas na minha cabeça.
Libertinagens à parte, minha mente também é cheia de culpa e desassossego. Então tive a esdrúxula ideia de trocar o Pikachu da televisão (“chega de telas, vá brincar!”) por vídeos do YouTube que ensinam a fazer dobraduras de Pikachu. Foi quando tudo começou.
Primeiro, é importante que o leitor entenda que eu odeio fazer qualquer coisa na vida que não seja dormir, vilipendiar desafetos em crônicas ou trabalhar no meu livro. Dobradura, na escala Richter das minhas exasperações, tinha tudo para abalar de forma recorde o meu sistema nervoso. Mas, antes de ser aborrecida, sou, sobretudo, obsessiva.
Fiz o primeiro “Pikachu dobradura fácil” e fiquei maravilhada com minha aptidão. Minha filha segurou aquele pequeno papel amarelo todo amassado, acarinhou os olhos esbugalhados feitos com canetinha preta e me escalou com afetos ansiosos como se eu fosse um tobogã de chocolate. “Oto, mamãe, oto!”
Parti para o “Pikachu dobradura” (sem colocar “fácil” no título) e suei mais do que no spinning –que fiz uma única vez há 14 anos e fui parar na enfermaria da academia. Ao final, Rita já estava certa de que eu era o mais genial, habilidoso e apaixonante dos seres. O amor de um filho, esses olhos que te veneram e têm exatamente a mesma cor dos seus olhos e que, por sua vez, são da exata cor dos olhos do seu pai.
Isso aí, minha gente, é um troço doido e forte demais. A íris pura e vibrante de um filho que acabou de descobrir que você é o máximo é a única cura possível, é como se a tal luz no fim do túnel fosse tão real e vigorosa que pudesse iluminar todo o corredor de escuridão de uma ancestralidade pautada por parentes cínicos que passaram a vida dizendo que você não ia dar em nada.
Nem deu tempo de ela pedir e eu já estava digitando “Pikachu dobradura 3-D passo a passo” no Google. Ninguém ia me parar.
Coloquei óculos de leitura, prendi os cabelos, comecei a arrancar pelinhas de lábio com os dentes, enchi um copo com guaraná Wewi e gelo. Eu não estava mais para brincadeira. Rita pedia: “Posso fazer os olhinhos, mamãe?”. Mas a minha voz robótica de insana assertividade, que aparece quando estou megalomaníaca com o sucesso (“será que vou vender dobraduras de Pikachu para o mundo todo e ficar rica?”), lhe respondeu seca e firme que “não”. E disse mais: eu precisava da mesa limpa e de silêncio. Rita, entediadíssima, foi ver televisão.
Ao fim de uma vitória esmagadora trazendo à vida o mais bonito Pikachu de origami 3-D que fica em pé, mexe a cabeça e solta raios, a internet me ofereceu a luta derradeira: o “Pikachu inflável 3-D origami tutorial passo a passo você consegue”.
Eram dez e meia da noite e Rita já tinha dormido na sala. A Netflix já aporrinhava com aquela pergunta invasiva: “Você quer mesmo continuar ou capotou e está babando na almofada?”. Mas espera. Que Rita? Ah, sim, essa criança que mora comigo. Encontrei uma Kalunga aberta, chamei um Uber Flash moto. O livro “A Arte dos Mestres” e cinco pacotes com papéis coloridos de origami especial já estavam subindo pelo elevador. Ninguém ia me parar.