Ao comemorar a anulação das condenações de Celina Abagge, Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira pelo assassinato de Evandro Ramos Caetano, Ivan Mizanzuk, autor do podcast Projeto Humanos, afirmou que as fitas que registravam a confissão de culpa dos cinco acusados obtida, segundo eles sempre afirmaram, sob tortura policial, eram “tranquilamente fáceis de encontrar”. A frase dele dita ao G1 é: “Posso dizer que era tranquilamente fácil de encontrar essas fitas na época.”
Na mesma entrevista ele diz que, por conta do sigilo da fonte, prefere não revelar como conseguiu acesso às fitas. De onde se conclui que Mizanzuk recebeu ajuda para obter as fitas. Fitas que, segundo nota divulgada pelos advogados de defesa da família Abagge, “haviam sido escondidas pelo Grupo Águia da Polícia Militar”. Ou seja, alguém franqueou o acesso de Mizanzuk às fitas escondidas por policiais, alguém que ele não quer nomear. Era “tranquilamente fácil de encontrar essas fitas” desde que alguém as colocasse na mão do repórter lá atrás, nos anos de 1990, ou do produtor do podcast.
Há muita injustiça, problemas e mistérios na investigação da morte de Evandro. A primeira injustiça permanece e atinge a família do menino Evandro Ramos Caetano que, tudo indica, jamais verá o assassino ser punido. Problemas houve vários, inclusive dentro da investigação, como já se sabia na época, quando brigas e competições entre as forças policiais inviabilizaram o inquérito policial. A tortura, além de desumana e imperdoável, atrapalha a elucidação de crimes. Mistérios há vários, até mesmo aquele que só faz sentido no Brasil: a polícia brasileira tortura pobres e indefesos, mas não se arrisca a usar a mesma prática com pessoas bem relacionadas ou com recursos financeiros. Por que a esposa do prefeito de Guaratuba e sua filha foram exceção? Por que aqueles policiais se sentiram autorizados a adotar essa prática violenta e desumana em mulheres tão bem relacionadas, que eram próximas do homem mais poderoso da política paranaense na época, o presidente da Assembleia Legislativa Anibal Khury?
Outra injustiça surge agora, criada por Ivan Mizanzuk, que ao celebrar seu sucesso diminui o trabalho de dezenas de jornalistas que, naquele início dos anos 1990, cobriram o chamado Caso Evandro. O próprio Mizanzuk se baseou amplamente, conforme mostra seu podcast, no material produzido pelos veículos de comunicação da época, inclusive entrevistando jornalistas envolvidos na cobertura. Com isso, ele obteve o quadro geral dos fatos e teve acessos a detalhes que, de outra forma, não teria, já que não constavam nos autos. Mas Mizanzuk hoje estimula o raciocínio anacrônico em seu público. Pois é um anacronismo julgar com os olhos de 2023 a imprensa do início dos anos 90, quando, entre outras diferenças, não havia Lei de Acesso à Informação (que é de 2011) e o Ministério Público ainda se adequava ao seu novo papel definido pela Constituição de 1988. Some-se a isso o calor dos fatos: tanto no governo do Estado quanto no Judiciário estavam pessoas que conheciam os envolvidos, fossem eles as duas senhoras da família Abagge ou os policiais e investigadores. Havia muito interesse em esconder, em proteger, em difundir certas narrativas. Em resumo, fazer reportagem naquelas circunstâncias era muito mais difícil.
Voltando as declarações de Mizanzuk: se as fitas estavam tão acessíveis como ele afirma, aqueles jornalistas que o precederam — consumindo muito tempo de suas vidas atrás de fontes, trabalhando enquanto os fatos ocorriam — teriam sido descuidados, deixando passar um detalhe, que era a localização e o acesso às fitas. Concluo que os próprios advogados de defesa da família Abagge teriam cometido a mesma falha por muitos anos. É isso que Mizankuk insinua hoje, contando a história pela metade, protegido pelo direito de proteger a sua fonte de informação. Então chegamos ao ponto que me faz escrever esse texto: se ele não pode contar quem é esta fonte, tampouco pode diminuir o trabalho dos repórteres da época. Da forma como ele conta sua história, os jornalistas ficam, como toda a sociedade, sem saber a história inteira e sem poder avaliar se falharam.
No início dos anos 1990, o cenário do jornalismo paranaense era outro. Os grandes veículos mantinham sucursais com equipes no estado. Havia vários jornais locais. Por isso é que falo em dezenas de repórteres que, ao longo de pelo menos dois anos se debruçaram constantemente sobre o caso Evandro. Eu era chefe da sucursal da revista Veja em Curitiba e fiz algumas matérias sobre o assunto. Em diferentes momentos, a Veja também enviou um repórter do Rio de Janeiro e uma repórter de São Paulo para investigar novas pistas. Jornalistas eram frequentemente contatados pelos advogados da família Abagge com indicações de pistas que provariam a inocência delas ou, pelo menos, que elas foram torturadas. Estive na penitenciária para conversar com os acusados, fui a Guaratuba, estive com investigadores que me deixaram desanimada ao retratarem a confusão em que havia se transformado o inquérito. Ainda assim, meu envolvimento com o caso foi muito pequeno comparado ao de colegas que realmente mergulharam na investigação. Tenho amigos que tiveram um enorme envolvimento com o caso e que acumularam muita informação (e muitos pesadelos). Eles admitem suas dúvidas sobre o que teria de fato acontecido, o que me parece a postura mais sensata diante de um crime em que não houve uma investigação policial isenta e técnica do início ao fim.
O jornalismo está desaparecendo no Paraná e a sociedade não entendeu o que isso significa. Por isso me incomoda – a ponto de me fazer escrever esse texto – que um projeto feito a posteriori diminua o bom trabalho de reportagem feito por uma geração de jornalistas ao mesmo tempo que não revela para as novas gerações de repórteres qual o segredo de seu sucesso.