Raphaela dos Santos, 5, de Paraisópolis, esqueceu como escrever seu nome e os números. Ana Júlia, 5, quase vizinha, ainda escreve seu primeiro nome, mas não o segundo. A Prefeitura de São Paulo não definiu data para reabertura das escolas, mas garante que aplicará medidas de recuperação de conteúdos que “eventualmente foram perdidos” (Folha, 27/12). 2020 ficará na memória como o ano em que o Brasil tirou a máscara, evidenciando que, na nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar.
“Não venha comparar as nossas escolas com as da Europa!” Benin, Chade, Burkina Faso, Guiné Equatorial, República do Congo, Serra Leoa e Cabo Verde —anote esses nomes, professor. São alguns dos países africanos que, em outubro, já tinham retomado aulas presenciais. Sugiro uma atividade para o dia distante da volta à escola: colori-los no mapa. Título: onde sobrevive o direito à educação.
“A vida primeiro! As crianças infectarão os professores e seus próprios familiares.” A ciência diz coisa diferente. Crianças não são grupo de risco e não participam significativamente da cadeia de transmissão. Mas, ao que parece, o consenso científico vale apenas quando não colide com os interesses corporativos. E, de mais a mais, sempre haverá algum “especialista” de rede social disponível para afirmar o que se quer ouvir.
“Só depois da vacina —e da reforma física dos edifícios escolares.” A Apeoesp, que recusa o retorno antes da Volta do Messias (o Jesus, não o Jair), solicitou ao STF a vacinação dos professores na “primeira etapa”, antes da maioria dos idosos. Não está só: junta-se a entidades de promotores e ao próprio STF, que pediram à Anvisa o mesmo privilégio. De qualquer modo, as vacinas não foram testadas em crianças, justamente porque não pertencem aos grupos de risco. Assim, por enquanto, nem mesmo se planeja a imunização de crianças. O álibi perdurará.
“Ação judicial em defesa da vida.” A Apeoesp impetrou um mandado de segurança no TJ de São Paulo “para que as aulas presenciais não retornem em plena pandemia”. Na prática, se os juízes cederem à chantagem sindical, a rede estadual de escolas públicas permanecerá fechada ao longo de todo o primeiro semestre. É missão dos professores ensinar a lição da igualdade de direitos. Por que todos os sindicatos de profissionais que trabalham presencialmente não impetram ações judiciais similares?
“Greve geral, pela vida!” Médicos e enfermeiros não fizeram paralisação. Motoristas, comerciários, entregadores compareceram todos os dias. Trabalhadores dos setores essenciais circularam em ônibus, trens e metrô. A quarentena de uns depende da aglomeração de outros. Mas a chantagem funciona: políticos espertos, como Covas, sempre temem a ira santa dos sindicatos de professores.
No site da Apeoesp aparece um mapa colorido com os 320 municípios paulistas que “rejeitam o retorno precoce das aulas presenciais”. A peça cartográfica foi atualizada em meados de outubro, precisamente quando completou-se a reabertura escolar naqueles sete países africanos. É uma ilustração sem igual da escala de prioridades, da mendacidade e do oportunismo de nossa elite política, da qual faz parte a aristocracia sindical docente.
O mapa deve ser guardado —e não só para os cursos de ciência política. Algum dia, a Raphaela aprenderá a ler. Saberá, então, quem sabotou a vida dela, em nome da vida.