Um programa de governo não se limita apenas a uma política social nem aos pré-requisitos de uma política econômica.
Apesar da importância da viagem à China, sem ela o governo ganhou tempo para acelerar o projeto de arcabouço fiscal. Ele não significa, mecanicamente, uma queda na taxa de juros. Mas, segundo a própria ata do Comitê de Política Monetária (Copom), se for sólido e tiver credibilidade, pode impulsionar o processo de normalização da economia brasileira, que vive hoje com a maior taxa de juros do mundo, uma posição que ocupa desde maio do ano passado.
Há no ar uma certa insatisfação com o ritmo do governo. Às vezes ela se manifesta no próprio presidente, às vezes na forma não de uma onda, mas de uma pequena marola de eleitores descontentes.
A insatisfação prematura é fruto de uma limitada análise da realidade. Ela tem como modelo o início de outros governos no período democrático. Mas as coisas mudaram nos últimos 20 anos.
Se o início do governo fosse uma corrida, era possível descrevê-la como tendo queimado a fita muitas vezes. Praticamente na primeira semana, houve o episódio de 8 de janeiro. Em seguida, a tragédia Yanomami e, para completar, as chuvas de verão, cada vez mais fortes e mais destrutivas.
O próprio arcabouço fiscal, que descrevi aqui como um começo de governo, não saiu tão leve e desenvolto como se pode pensar. Houve discussões sobre as despesas, quais delas poderiam suplantar os limites? Em certo momento, comentou-se que saúde seria um tópico com gastos ilimitados. Por mais que entusiasme, a ideia não é de fácil realização. As demandas no campo da saúde são crescentes e tendem ao infinito. No passado, não se faziam operações para diminuir o estômago. Remédios para doenças raras são muito caros e a cada momento aparece uma novidade. Para certas doenças, o SUS não só banca os remédios, como o suplemento alimentar necessário.
De certa maneira, o arcabouço fiscal tem de reduzir despesas, pois o objetivo declarado da equipe econômica é também reduzir o déficit de R$ 230 bilhões para algo em torno de R$ 120 bilhões.
Não há grandes mágicas.
A reforma tributária já está no pipeline. Logo em seguida, ela deverá concentrar a atenção do governo e do Congresso. Segundo todos os especialistas que a discutem, ela vai liberar recursos das empresas, envolvidas hoje no cipoal de impostos. Não só elas devem ser beneficiadas, mas também consumidores e os diversos níveis de estruturas estatais. Para que isso aconteça, é preciso racionalizar, simplificar e, certamente, discutir muito.
Mas, ainda assim, mesmo que realizados com êxito, arcabouço fiscal e reforma tributária não sintetizam um programa de governo, mas são apenas condições para que ele se materialize.
Um programa de governo como aqueles que eram feitos no passado, na verdade, ainda não apareceu. Tópicos importantes da política social já estão em curso, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, e boas ideias como o Desenrola também foram articuladas.
Mas um programa não se limita apenas a uma política social nem aos pré-requisitos de uma política econômica. Depois da pandemia, alguns países do Ocidente apresentaram propostas de reconstrução baseadas na economia verde e na expansão digital.
O discurso do presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, acentua essas prioridades do banco. Mas era necessário um programa mais completo explicitando onde os empregos verdes podem ser abertos, onde a digitalização, inclusive no interior do governo, deve acontecer.
Outro fator que merecia um destaque programático é a relação entre governo e iniciativa privada. Existe uma convicção de que investimentos do governo impulsionam a economia e podem resolver os principais problemas. Mas quase todos os grandes projetos necessitam de parceria com a iniciativa privada. Tenho escrito sobre isso aqui. O interessante é que a experiência norte-americana não se limita a coordenar grandes esforços conjuntos. O governo Biden usa também a iniciativa privada como um instrumento auxiliar na sua política social.
Esse conjunto de ideias não faria necessariamente com que as coisas andassem mais rápido. Mas é destinado a fortalecer um rumo. Quando se tem um rumo, há mais conforto sobre o ritmo, não precisa ser alucinado nem lento demais. De um ponto de vista popular, o critério será o da picanha na mesa de todos. Mas um programa mais amplo para o Brasil poderia até superar essa premissa: de um ponto de vista da saúde e do meio ambiente, existem outras alternativas.
Infelizmente, o próprio Congresso brasileiro, que começa a trabalhar depois do carnaval, só engrenará mesmo depois da Páscoa. No momento, está perdido numa discussão sobre como conduzir medidas provisórias, disputando o poder na análise desse instrumento. Interessante como se debatem em torno de algo que os enfraquece, como se lutassem em torno do próprio túmulo parlamentar.
O grande debate nunca foi o de como compor essas comissões. A Constituição as define como mista e uma decisão interna designa 12 senadores e 12 deputados para ela. O grande debate é como limitar as medidas provisórias e liberar mais espaço para as grandes decisões parlamentares, muitas delas fora do alcance do programa presidencial.
Por enquanto, Câmara e Senado se debatem em torno de sua própria desimportância, como se a adotassem e se orgulhassem dela.