Pagode na laje

Voltei a morar em Get Back

Depois de alguns meses exilado neste inóspito país estrangeiro chamado Brasil, voltei a morar em “Get Back”, o documentário com imagens inéditas dos Beatles. Quando o calo aperta, pego meu saco de dormir e me meto no estúdio londrino: entre a Yoko e o hare krishna, passo horas vivendo com meus amigos imaginários de Liverpool.

Uma das partes mais interessantes é quando a Scotland Yard aparece para acabar com o último show da banda, na cobertura da Apple. Enquanto dois delicadíssimos e imberbes policiais são engambelados pela secretária e pelo manager da banda, um repórter na rua entrevista os passantes: o que estão achando daquilo?

Para uma senhora de cabelo azul, o show é “Supimpa! Uma maneira bonita e solar de terminar o dia!”. Para um tiozinho de cartola, “Traz vida à cidade de Londres”. Há, contudo, almas atormentadas cuja primeira reação, ao ouvirem Beatles entrar pela janela do escritório no final do expediente, não é pensar na sorte de estarem vivos naquela época, naquela cidade, naquele bairro, mas chamar a polícia. Um sujeito cinza, de terno cinza e bigode cinza, grasna: “Atrapalha completamente todos os negócios da região!”.

Tenho de concordar com o plúmbeo bigodudo. Os Beatles tocando no telhado, no meio da tarde, atrapalham completamente todos os negócios na região. Acontece que o contrário também é válido: todos os negócios da região, ao chamarem a polícia, atrapalham completamente o show dos Beatles. E aí, como é que fica?

A resposta cinzenta padrão é: as pessoas precisam trabalhar para ganhar dinheiro e pagar as contas, enquanto a música é uma atividade inútil. É. Vá lá. Mas há maneiras menos tacanhas de se encarar o fato de haver nascido.

O mundo produzido por aquelas pessoas que discaram 190 ao ouvir “Don’t Let me Down” viria a dar aqui: neste apocalipse político climático zumbi com tanta desigualdade, Romero Britto e pizza de sushi. Passamos horas no trânsito. Quem não tá gordo é anoréxico. A humanidade se divide entre os ansiosos e os deprimidos e, embora saibamos que a vida é curta, gastamos boa parte dela vendo imagens da falsa felicidade alheia nas redes sociais. O que só nos deixa mais ansiosos ou deprimidos. Ou gordos ou anoréxicos. E ainda aumenta o aquecimento global, pois precisamos de cada vez mais energia pra ver mais fotos da falsa felicidade alheia nas redes sociais. Bem, aqueles caras, ali no telhado, estavam sugerindo uns outros caminhos.

Durante o Carnaval, no Rio de Janeiro, um taxista furibundo começou a rosnar quando viu, num bloco de rua, garotas de maiô com a bunda (meio) exposta. “Falta de vergonha! Elas não se dão o respeito, depois reclamam se alguém passa a mão!”. Tentei argumentar que mostrar meia bunda era um direito de qualquer brasileiro, passarem a mão nela, não, mas o homem vivia uma lua de fel com o semelhante.

Lembrei, na hora, do documentário. À época do lançamento, alguém tuitou que a queda de braço entre os SUJEITOS CINZENTOS X BEATLES NO TELHADO seguia vivíssima —e com ampla vantagem para o primeiro time. Ó que enrosco: o mundo acabando, a humanidade infeliz pra burro e ainda acham que loucas são meninas dançando de maiô na rua ou a maior banda de todos os tempos tocando de graça pra população da cidade.

“I have a dream!”, diria Martin Luther King. “I have a dream that one day” os Beatles e as bundas poderão mais do que os bigodes grisalhos! “I have a dream” de que um dia o menino da Scotland Yard e o hare krishna e a Yoko Ono estarão de mãos dadas cantando “All together now!”.

Não. Aí também já é demais, Antonio. Além de inalcançável, soa piegas. Sejamos pragmáticos na utopia: se deixarem em paz os Beatles e as bundas, já tá de bom tamanho.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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