Talvez você me entenda, porque sou uma figura dúbia e bem representativa de nossos tempos: eu sou um bicho ególatra, antissocial e nojento que gostaria de viver em uma caverna sem jamais ouvir novamente a voz humana. Mas eu também sou uma fofura comunicativa cheia de seguidores, almofadas e boas intenções. Não é mentira quando minha cara de besta sorri numa rede social idiota. Também não é mentira quando eu a observo e tenho vontade de vomitar.
Funciono razoavelmente bem por uns 20 dias. Chego a pensar que estou curada de minhas sombras, dores, maldades e tristezas. “Nossa, impressionante como estou cheia de pique, serotonina e benevolência, caminhando cedo no parque, olhando amorosa e paciente para um ponto fixo no horizonte enquanto tem sempre uns dois ou três desgraçados me irritando, rendendo horrores no trabalho, suando generosidade pelos poros e indo a todos os eventos para exibir meus dentes imensos”. Até que vem o famigerado buraco e me suga para seu fundo com a língua quente de um demônio familiar.
Sou como aquele coelhinho do comercial da Duracell. Minha bateria nunca acaba. Nunca acaba. Mais um evento, mais um curso, mais um podcast, mais um livro, mais uma palestra, mais uma crônica, mais uma entrevista, mais uma causa, mais um email de estudante, mais um ente querido me enlouquecendo, mais um encontro com gente que se posiciona impecavelmente sobre todos os assuntos (enquanto esconde a imensa escova para os longos cabelos do ego). Até que, na impossibilidade de parar, viro um coelhinho macabro.
Ontem estava conversando com minha amiga Renally, e ela me perguntou o que eu estava planejando para o feriado. Respondi que gostaria de passá-lo protegida de qualquer expectativa de romance. Somente isso. Poder ser um humano bruto, sem malabarismos, sem brilhos, insuportavelmente ensimesmada tentando dar conta de minhas sombras, dores, maldades e tristezas —e ser amada apesar disso.
O namorado mais “romântico” que tive foi disparado um dos piores caras com quem me relacionei. Era comum que ele tocasse Ben Harper no violão, seus olhos brilhavam, ele adocicava a vozinha malandra nos versos, mas ai de mim se eu resolvesse cantar junto “e estragar tudo”. Ele gostava de uma pousada no interior de São Paulo, cujo chalé ficava no alto de uma montanha e, pela manhã, uma charrete cor-de-rosa vinha nos buscar para o café da manhã. Na noite anterior, quase sempre ele havia gritado comigo ou me empurrado.
Uma vez, esse grande romântico, que me traía muito e me tratava baseado em alguma lógica de castas, teve a ideia de um jantar especial. Comprou mexilhões, que eu odeio. E vinhos, que eu não tomo. Tive uma crise de enxaqueca e comecei a passar mal, enjoada. Ele ficou indignado e pediu que eu fosse embora. Eu era sempre a pessoa viva e real que estragava suas cenas imaginadas e perfeitas.
Não tem coisa que me broche mais do que cenas românticas forçadas. A pessoa que quase implode uma casa metendo 178 velas por todos os cantos. A bossa nova baixinha. A dancinha lenta. Nada disso importa se não vier acompanhado de parceria para que eu possa reclamar das pessoas com quem eu trabalho. Vai me ajudar com meus pais e com minha filha? Vai escutar que estou com mais uma amigdalite ou enxaqueca sem revirar os olhos?
Prefiro quem está comigo no pronto-socorro a quem está comigo em Paris.
E que ninguém me cobre o doce sorriso da moça de fácil convívio ou o leve olhar da alma apaixonada. Quero emburacar. E o único romance, para mim, é poder emburacar ao lado de alguém que, convicto e em paz com seus buracos, não tente me salvar ou educar.