Propina de Bolsonaro no MEC com pastores é rebatida com Carnaval

Ato do MST com pessoas pintadas de ouro egípcio não poderia ter sido mais cirúrgico contra falsos profetas

Bem que Milton Ribeiro tentou se agarrar à mão de Deus, mas o Senhor preferiu soltar. O Ministério da Educação de Jair é mesmo de alta rotatividade. Com menos de um ano de gestão pela frente, o próximo a esquentar a cadeira deveria se limitar a lançar a campanha “Educação pra quê?”, resumindo o trabalho realizado pelos quatro antecessores na pasta.

Dentre todas as manifestações de repúdio à profanação da Bíblia e ao propinaço que, suspeita-se, rolaram à solta no MEC, destaco a do MST, ocorrida no dia 25 de março, em Brasília. Dez! Nota dez, no quesito alegoria! Pintados de dourado egípcio e carregando um bezerro de ouro num andor, os participantes distribuíram barras falsas do vil metal, numa apresentação digna do teatro Oficina. Moisés aplaudiria de pé.

Só mesmo um ato cívico carnavalesco para dar conta do milagre da multiplicação de pastores picaretas que assola o país. Pi-ca-re-tas, repito, numa alusão às palavras do líder da bancada evangélica, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), no GloboNews Debate.

A fé move montanhas. Respeito muito os que a têm, e desprezo, em igual medida, os que se valem da mesma para explorar os incautos.

Na Rússia, diante de um estádio lotado de devotos, Vladimir Putin apelou para o Novo Testamento, a fim de justificar as baixas da sua guerra particular. “Não existe amor maior do que dar a própria vida pelos verdadeiros amigos”, disse, citando João Evangelista, num discurso já preparado para os familiares de soldados abatidos, que retornarão para casa num caixão.

O grande erro dos soviéticos, segundo o czar, foi ter dado as costas para a Igreja Ortodoxa. Com a bênção do patriarca, o bem afortunado Putin fez a alegria dos oligarcas próximos, jurando zelar pela moral e pelos bons costumes dos cordeiros da mãe Rússia. Aleluia! Agora, só falta apertar o botão vermelho e deflagrar o Armagedão.

No Brasil do Mito, o Deus acima de todos, ao que parece, esconde o toma lá dá cá dos que pregam com uma arminha na mão. Chuta-se para o corner o Estado laico, se proclamando representante direto de um Pai Eterno Todo Poderoso. Facilita demais.

Mas não é de hoje que o autoritarismo recorre ao poder divino para governar. Alguns estudiosos defendem, inclusive, que a religião pariu o Estado.

Essa é uma das teorias debatidas pelo antropólogo David Graeber e pelo arqueólogo David Wengrow em “The Dawn of Everything”, livro sobre a origem da desigualdade, que acaba de ser lançado nos Estados Unidos e está disponível na versão ebook no Brasil.

Todos aprendemos na escola que a revolução agrícola gerou um excedente de produção, que permitiu a concentração de riqueza e o surgimento de castas, classes, cidades, reinos e, mais tarde, do Estado. Mas o processo que levou caçadores coletores paleolíticos a optarem pelo sedentarismo agrícola ainda não é totalmente explicado.

Em “Homo Sapiens”, o historiador Yuval Noah Harari defende a sedutora ideia de que foi o trigo que nos escravizou, nos condenando ao trabalho insano de arar, plantar e colher. Graeber e Wengrow criticam o determinismo da teoria e apostam, entre outros fatores, no poder de persuasão divino.

Padarias inteiras foram encontradas em tumbas de faraós egípcios, considerados deuses vivos e filhos diretos de Osíris, inventor da agricultura e deus dos mortos. E os mais antigos fornos de assar pão em larga escala do Egito, escavados em sítios arqueológicos vizinhos a cemitérios de múmias. As aluviões do Nilo podem ter prosperado graças às sagradas demandas fúnebres, as mesmas que exigiam o sacrifício de todos os que serviram ao soberano em vida, para continuarem a assisti-lo no além.

Por um Deus, morre-se e mata-se em devoção cega. É por isso que não se deve misturar política com religião.

A pequena cidade de Abadiânia, em Goiás, floresceu na aba de um João que, não à toa, acoplou Deus ao nome. O milagreiro fez do município um feudo, desenvolvendo o turismo e o comércio da região, em torno de um centro de atendimento místico. João Teixeira de Farias reunia, em si, os três fundamentos que Graeber e Wengrow consideram essenciais para o surgimento do Estado: a violência, o carisma e o conhecimento secreto.

Muitas das vítimas de estupro do charlatão demoraram a denunciá-lo por temerem a violência de seu exército de capangas, o seu carisma junto aos poderosos e o ódio dos que acreditavam nos seus poderes secretos.

O MST não poderia ter sido mais cirúrgico no protesto contra os falsos profetas desse projeto de Brasil egípcio abadiânico.

Que as urnas nos iluminem em outubro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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