Prosa de avô e bisavô coruja

Com o abrandamento das restrições ditadas pela pandemia, Bernardo, meu bisneto, pôde, enfim, comemorar, no penúltimo sábado, os seus dois aninhos de vida, completados em maio. Uma reunião simples no Buffet Infantil Fun Jungle, com pouca gente, apenas pessoas da família, as mais próximas. De crianças, apenas três, além do aniversariante: uma ainda de colo, Vicente, e duas um pouco maiores, Heitor, de cinco anos, e Maria Helena, de três, netos da nossa assessora Valderez. Bernardo, no entanto, ficou feliz da vida. Enfim, um pouco da liberdade, além das paredes da sua casa ou das casas dos seus avós. Um mundo de novidades à sua disposição. Aiô, Silver! – como diria o Zorro.

Se tornar-se avô já foi uma alegria indescritível, imaginem então ser bisavô, ou seja, duas vezes avô!… Jamais imaginei chegar a tanto. Mas, como tenho dito e repetido, não se programa a vida. Até tenta-se, mas ela caminha por conta própria, com os seus dissabores, suas surpresas e suas alegrias.

Quando meu neto Eduardo, pai de Bernardo, fez oito anos, nos idos de 2004, escrevi um texto endereçado a ele (“O Velho e o Menino”). Embora ele fosse nosso companheiro constante, meu e da avó Cleonice, e se interessasse pelas bobagens do avô, nem sempre tinha tempo para prestar atenção nas histórias que eu lhe contava. Como bom taurino, era aplicado, curioso e afetuoso, mas também teimoso e possessivo. Às vezes, desligava, saía do ar e era difícil fazê-lo voltar a esse mundo. Por isso, para que a saga dos Guimarães não se dissipasse na brisa do tempo, resolvi deixar alguns escritos para ele. Continuo deixando.

Foi e continua sendo um belo exercício de prazer, que me faz recordar, sem nenhum saudosismo, de uma época que se foi. E não exige grande esforço. Além do que, talvez um dia, quando eu for apenas um retrato na moldura, tenha alguma serventia.

Hoje, aos 25 anos, Eduardo está concluindo o curso de engenharia mecânica na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, fez estágio na Renault, continua prestando serviço à empresa francesa, e constrói o seu próprio caminho. Ao lado da sua Suenne. E de Bernardo. Com as bênçãos do avô.

O mesmo aconteceu quando minha neta Fernanda completou dois anos. Revelei-a publicamente em “Minha Pequena Guerreira”, de 2007. Cabelos dourados, nariz arrebitado e energia de sobra, era uma formiguinha atômica: linda, esperta e muito querida. Foi também uma experiência nova para mim, que só tive um irmão, homem; um filho, homem; e, até então, um neto e um sobrinho-neto, homens também. Aí surgiu Fernanda. E o mundo mudou. Para melhor.

Como gostava de desenhar, certa feita, quando ela tinha uns cinco anos, disse-lhe que ia matriculá-la em um curso de desenho. Respondeu-me, muito séria: “Não posso, vô. Já vou ser detetive e espiã e tenho de cuidar do mundo!” Hoje, aos 16 anos, pretende apenas cuidar das pessoas. Quer ser médica.

Agora, é a vez do Bernardo na trilha dos Guimarães, em moderna versão. Não sei se será escritor e poeta como o seu famoso homônimo do século XIX, autor de, entre outros romances, “Escrava Isaura”. Como o pai e a tia, aos dois anos quase não fala, mas entende tudo e é capaz de pôr a casa de cabeça para baixo em exatos cinco minutos, da mesma forma que é capaz de entregar-me, como presente, um pedacinho de papel e dizer-me baixinho, naquela linguagem que só os avós e bisavós entendem: “Bisa querido, eu te amo!”.

Bernardo chegou de repente. E foi muito bem-vindo. Não sei se ele foi consultado sobre a vinda a este mundo, em momento tão doloroso. Desconfio que tenha sido e concordado, trazendo como missão mudar o que está aí. Reúne algumas condições que dizem ser características das chamadas crianças cristal: tem olhos grandes, espertos, que, ao pousarem em você, parecem perscrutar a sua alma; é curioso, tudo lhe interessa e lhe chama a atenção, sem assustá-lo; sabe, desde já, o que quer, e tem pressa. Pode ser também doce, afável e carinhoso, quando sobra-lhe tempo para isso. A primeira palavra que disse foi “luz”. E isso talvez tenha algum significado.

Então, meu querido Bernardo, se você chegou para mudar o mundo, que posso eu ensinar-lhe? Talvez uma lição recebida de Rubem Alves, que teve a experiência de quatro netas. Um segredo guardado a sete chaves, que só pode ser contado em conversa particular entre avô e neto ou bisavô e bisneto, sem a presença dos pais. Mais que um segredo, é um alerta: cuidado com os adultos. Eles são uns tolos, cheios de regras e manias. São sisudos e mal-humorados. Têm uma palavra favorita – “não!” – e só sabem ameaçar com castigo. Levam tudo muito a sério e não sabem brincar. Evite ficar como eles, Resista. E conte com este bisavô, enquanto eu ainda estiver por aqui. Um grande beijo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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