Puro nonsense

O ditador português Salazar lia um jornal feito para fazê-lo acreditar que continuava no poder

Um dos contos nonsense de Woody Allen, de quando ele escrevia contos para a revista The New Yorker e os reunia em livros nos anos 70, trata de um homem maduro, solteirão, inútil, que sempre morou com a mãe e era por esta tratado como um idiota. Um dia, para massacrá-lo de vez, ela lhe revelou: “E quer saber de uma coisa? Você é anão. Eu e seu pai montamos esta casa na sua escala para você nunca perceber!”.

A ideia de armar um pequeno mundo para uma pessoa não saber que a realidade lá fora é outra me ocorreu ao ler sobre uma nova biografia do ditador português Oliveira Salazar (1889-1970), que por 40 anos condenou Portugal ao atraso, à asfixia, à pobreza e ao desprezo internacional. Trata-se de “O Ditador que Morreu Duas Vezes”, do italiano Marco Ferrari, com uma novidade em relação a outras biografias de Salazar que conheço

Como se sabe, em agosto de 1969, aos 80 anos e sem a menor intenção de pedir o boné, Salazar sofreu um acidente doméstico. Foi sentar-se a uma cadeira de diretor para ler seu jornal favorito, o Diário de Noticias, o que mais se acanalhava para agradá-lo. A cadeira virou, Salazar caiu para trás e bateu com a nuca no chão. Sofreu uma hemorragia intracraniana, não descoberta de imediato. Mas o caso se agravou, ele teve de ser operado e ficou inconsciente. Certo de que Salazar morreria e o poder não podia vagar, seu governo o substituiu por Marcelo Caetano, velho aliado.

Só que Salazar não morreu. Voltou a si e, para terror de seus homens, resistiu por 11 meses, razoavelmente lúcido. Já não governava, mas não podia saber disso, donde seus ministros o visitavam para “discutir” com ele os problemas. E —esta a novidade— toda manhã Augusto de Castro, diretor do Diário de Notícias, ia levar-lhe o jornal.

Um exemplar único, rodado só para ele, com as notícias alteradas omitindo seu sucessor, para Salazar pensar que continuava ditador. Era Woody Allen na veia.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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