O contraste entre os dois presidentes chamados Vladimir era notável. O primeiro, no controle do maior arsenal nuclear do mundo, discursava paranoico, com olhar de peixe morto. O outro, que usa a grafia ucraniana de seu primeiro nome, foi ovacionado de pé pelo Congresso americano depois de citar Martin Luther King.
Vladimir Putin acusou o Ocidente de tentar desmembrar a Rússia e de apostar numa “quinta coluna, traidores nacionais, aqueles que ganham dinheiro aqui, mas moram lá”. O discurso em videoconferência nesta quarta (16) sugere que o presidente percebe o catastrófico erro de cálculo que fez, não só no campo da batalha, mas também no front econômico na Rússia.
Um jornalista com amplo acesso ao vasto aparato de segurança do governo russo revelou há dias que todos os interlocutores com quem conversa, inclusive nos ministérios sem vínculos com as Forças Armadas ou espionagem, apontam o dedo apenas para Putin como o responsável pela guerra que já infligiu perdas sérias ao Exército, em vidas e material.
Como sempre, o russo acusa os outros do que quer fazer. Seu diretor de divisão da área externa do FSB (sucessor da KGB) estaria em prisão domiciliar depois de ter convencido o chefe de que havia cultivado uma sólida quinta coluna para apressar a queda do governo em Kiev. O governo ucraniano alega que, dias depois da invasão, “destruiu” uma força de assassinos de elite tchetchenos enviados à capital para matar o presidente Volodimir Zelenski.
É possível que a primeira arma usada por Putin para consolidar o poder, há 22 anos, não tenha mais a mesma eficácia. Antes mesmo de enquadrar oligarcas para não questionar sua autoridade, o presidente russo assumiu o controle da televisão no país que tem nove fusos horários.
Ele era um burocrata desconhecido quando foi nomeado sucessor de Boris Ieltsin, que renunciou no meio do mandato em dezembro de 1999. Em menos de três meses, o ex-espião da KGB teria que disputar sua primeira eleição, e um círculo leal no comando das redes de TV foi instrumental para transformar o medíocre funcionário público num estadista aos olhos dos eleitores.
Enquanto o Volodimir de Kiev comove diariamente uma plateia planetária, o Vladimir de Moscou dá sinais de temer o isolamento em discursos coléricos. Na fala de quarta-feira —oh, ironia—, o mais rico cleptocrata do mundo acusa seus oligarcas de serem corrompidos por patê de foie gras e as “chamadas liberdades de gênero”. Soa como seu protegido Donald Trump.
Putin talvez não perceba que a guerra imaginada como um passeio de poucos dias pode se revelar um tiro mortal na onda autoritária fascista que ele contribuiu para espalhar.