Quando o fígado supera o cérebro, o país afunda em um mar de bile

Clovis Rossi – Folha de São Paulo

Michelle Goldberg, colunista da “Slate”, reclama, em artigo para o “New York Times”, de “como a esquerda aprendeu a odiar como a direita”. Ela é liberal, o máximo de esquerdismo a que se permitem os americanos, e naturalmente culpa os republicanos por terem inaugurado o ódio com sua rejeição frontal a Barack Obama.

Mas lamenta que a reação dos liberais a Donald Trump seja igualmente rancorosa.

Proponho um exercício, talvez inútil e ingênuo, de trazer para o Brasil o raciocínio de Michelle. Aqui também, o ódio instalou-se no ambiente político e social. Não adianta discutir se quem instalou o ódio foram os “coxinhas” ou os “mortadelas”, mas ele está aí, forte.Faz no final do artigo uma observação preciosa: “O ódio oblitera a nuance e estimula teorias conspiratórias (…). Provavelmente não é bom para a América que toda eleição pareça-se a uma batalha pelo futuro da civilização”.

Odeia-se o PSDB ou o PT, assim como se odeia o juiz Sergio Moro ou Luiz Inácio Lula da Silva. No mundo político, só há um amor ecumênico: pela Odebrecht, OAS e demais empreiteiras, que irrigam todos os lados que amam odiar-se.

É um jogo que, de fato, “oblitera a nuance”. Pegue-se, por exemplo, o caso da libertação de José Dirceu, decidida por três dos ministros do STF. O ódio faz com que se diga que são traidores da pátria, pelo lado contrário a Dirceu, ou que a pátria foi salva das garras da República de Curitiba, pelo outro lado.

Fica perdida uma nuance importante: o STF não revogou a condenação de Dirceu; apenas determinou que ele fique em liberdade até o julgamento definitivo ou até que uma nova condenação, em outro caso, o leve de volta a Curitiba.

A condenação original, lá atrás, já produziu efeitos: Dirceu perdeu o mandato e teve sua carreira política truncada, provavelmente para sempre. Era, lembra-se?, potencial candidato à Presidência da República e, hoje, nem seus defensores exacerbados pensam nele para vereador.

Pulemos para outro exemplo: as reformas trabalhista e da Previdência. De novo, como escreveu Michelle Goldberg, fica parecendo, pela fúria com que cada lado ataca ou defende os projetos, que está em jogo o futuro da civilização.

Não creio que nem o futuro do Brasil, menos ainda o da civilização, estará assegurado ou perdido, caso passem ambas as reformas ou sejam ambas rejeitadas no fim das contas.

A nuance que se perde, a meu ver, é que nem o “status quo”, que os adversários das reformas acabam defendendo, nem as mudanças propostas estabelecem o paraíso na Terra. Se não houvesse essa carga toda de ódio, talvez se pudesse discutir reformas —que todos admitem serem necessárias— que tornassem os projetos mais aceitáveis.

Aí entra um conceito, o de “superioridade moral”, citado em “El País” desta quarta-feira (3) por Félix Ovejero, professor da Universidade de Barcelona: “Se alguém se sente essencialmente melhor, não acredita que deva explicações aos que não julga à sua altura”.

E assim vamos afogando em um mar de bile.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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