Estou indo à farmácia para comprar soro fisiológico para as narinas entupidas da minha filha. Ela não dormiu nem me deixou dormir. Encontro uma conhecida com a qual simpatizo, mas não posso dizer que adoro. Paro meio segundo para cumprimentá-la, torcendo para que não me peça nada. É o tipo de pessoa que acredita nos encontros humanos como portais do universo para obter ganhos: sempre precisa de um contato, uma divulgação, uma oportunidade para seu ofício incompreensível de facilitadora-cognitivo-positivo-funcional-para-estratégias-eficazes-de-objetivos-alcançados.
Quando penso que consegui escapar da fulana, chega sua tia e me estala na têmpora direita um beijo de buço suado. Ela diz “muito prazer”. Eu penso: “onde?”. Onde está o prazer nesta quarta-feira de merda?
Estou sem dormir. Minha lombar eternamente inflamada já foi pro sacro há muito tempo. Se não tomo injeção todo primeiro dia do mês, tenho uma enxaqueca quase que diária. O valor do plano de saúde dos meus pais idosos é igual ao meu salário em uma das empresas mais bem-sucedidas do país. Trabalho 16 horas por dia para não terminar o mês no vermelho e lido diariamente com um colega de trabalho que só não é mais grosso por falta de agenda. Não transo há 14 dias porque quando posso transar eu acabo dormindo, e aí sonho que tento jogar uns restos podres de comida em uma lixeira pequena e baixa, mas ela está abarrotada com minhas joias.
Respondo à tia, por educação e inércia, que “o prazer é todo meu”. Estou inteira cagada de laranja, pois virei a louca da curcuma. Lembram do Fábio Porchat inteiro cagado de azul gritando “JUDITE”?
Eu sou essa pessoa, mas com a cor laranja, achando que a curcuma vai levar embora da minha vida tanta amigdalite e dor no corpo. Só ganhei uma gastrite. Comprei um All Star que maltrata as laterais de meus dedinhos, que estão assadas, raladas. Vivo fedendo àquela pomada chinesa Tiger Balm —a vermelha, que é mais forte. Já passei no pescoço, na testa, nos ombros, nas escápulas, na lombar.
“O prazer é todo meu.” Me vejo de fora, balançando a cabeça em desacordo. Mentira. Não tem prazer, muito menos TODO o prazer, e ele definitivamente não é meu. Como pode uma pessoa viciada em TikTok usufruir de algum prazer verdadeiro na vida? Até assistindo a um bom episódio da melhor série do mundo eu penso: “tá demorando pra acabar”.
O pior estrago que a tecnologia fez conosco foi destruir a capacidade de concentração do nosso cérebro para informações válidas, complexas e duradouras. Na verdade, isso não passou de uma preparação sábia para que a gente fosse ficando tão burro a ponto de agora achar que o ChatGPT é genial.
O processo para nos substituir nem foi tão engenhoso assim e estamos tão cansados que suspiramos de alívio. O jornal se tornou insuportável. A revista Piauí, uma afronta. “O que você tem aí pra mim que me dê uma alegriazinha burra de três segundos?” Essa passou a ser a pergunta da minha cabeça. Arranquei o TikTok do meu celular e voltei a ler. A cada dois parágrafos, eu tremo e meu cérebro pede: “vai, me dá, me dá aquela porcariazinha mais fácil e gostosinha, vai?”.
Não tem um pingo de prazer no meu corpo. Minha enxaqueca avisa que está na hora da injeção do mês. Meus dedinhos assados latejam. A empresa de cosméticos que me contratou para uma palestra simplesmente não pagou —nem sequer responderam o meu e-mail. Outra empresa para a qual fiz um trabalho perdeu a nota, então agora só mês que vem. Vou ficar no negativo assim que comprar um soro fisiológico. É quando coço os olhos com um pouco de pomada Tiger Balm nos dedos e tenho a certeza de que vou morrer em um cruzamento da avenida Angélica.