Quatro mulheres

Eram quatro irmãs. Todas elas doces criaturas. Prendadas, prestativas, gentis e caridosas. Foram educadas em casa, pela mãe, educação esmerada. O pai impunha respeito e era uma referência tanto em casa quanto no trabalho. Havia ainda dois homens, igualmente bem formados e dedicados ao Direito. Vinham de longa linhagem, de desbravadores dos sertões e semeadores de comunidades. Entre eles, o português Diogo Pinto de Azevedo, conquistador dos campos de Guarapuava, que fez acrescentar ao sobrenome o apelido Portugal, em homenagem à terra natal. Em nome de D. João VI, ampliou as fronteiras do oeste do Paraná e inscreveu o seu nome na história do Brasil como exemplo de destemor e bravura. Neto de Diogo foi Clotário de Macedo Portugal, advogado, promotor público, juiz de Direito, desembargador, professor da UFPR e patrono da Justiça paranaense. Clotário era pai das quatro irmãs e dos dois irmãos.

A mãe, Annita de Macedo Portugal, foi outro exemplo de vida. Esteve presente em toda a história do marido, inclusive nos momentos mais tensos e perigosos, como por ocasião dos conflitos da revolta do Contestado, no sudoeste do Paraná, onde o jovem Clotário servia como magistrado. Annita tinha medo, sofria em silêncio, mas não arredou pé do lado do marido. De igual modo, manteve a serenidade e a modéstia nos momentos de glória, como quando o marido presidiu durante quinze anos o Tribunal de Justiça do Estado e assumiu a interventoria do Paraná, sucedendo a Manoel Ribas. Era uma fortaleza escondida na mansidão do olhar e na fragilidade de um corpo pequeno e carente de cuidado. Sempre foi, sobretudo, esposa e mãe. E passou o exemplo às filhas. Quando o marido morreu, em 1947, vestiu luto e nunca mais o tirou. Mas manteve-se lúcida até o fim, aos 94 anos de idade, lendo diariamente os jornais, tocando piano e exercitando o francês que aprendera na infância.

Alice, Ana (Any), Myrian e Therezinha eram as filhas de Annita e Clotário. Como a mãe, dedicaram a vida às famílias, espargindo uma simplicidade quase desconcertante, que chegava a desmentir a origem estrelada. Alice e Therezinha, a mais velha e a caçula, foram primeiro. Ana partiu em 2007, restando apenas Myrian.

Participei da vida das quatro. Pelas mãos de Cleonice, que era filha de Any e viria a ser minha companheira de vida, entrei no aristocrático sobrado da Rua Clotário Portugal, 35. Eu era só um “polaquinho” de Araucária, nascido na velha Lapa, com pálido pedigree, mas fui recebido, desde logo, com cordialidade, carinho e afeto pela “vó” Annita e pelas “tias” Alice, Myrian e Therezinha. E com elas aprendi proveitosas lições. Como, por exemplo, a arte de chupar laranjas de gomo – ato que, segundo Rubem Alves, indica a nobreza das pessoas. Soube que chupar laranjas pela tampa não é elegante nem inteligente. Porque não se aproveita verdadeiramente o seu sabor. Aprendi também que, por motivos semelhantes, um sanduiche deve ser fatiado antes de ser levado à boca. Coisas pequenas, aparentemente insignificantes, mas que fazem a diferença.

Any nunca foi minha sogra. Era muito mais mãe. Daquelas que, durante um atrito entre a filha e o genro, apoia sempre o genro, mesmo sabendo que a filha tem razão. Foi uma honra ter participado de sua vida e dela ter recebido tantas lições de vida. Tenho muita saudade dela todos os dias.

Myrian era a remanescente. Até quarta-feira da semana passada, 2/9, quando decidiu ir ao encontro das irmãs. Estava na flor dos 89 anos. E, tirando a falta de audição, que a acompanhava desde jovem e que se agravara nos últimos tempos, estava ótima. Sempre teve uma vantagem sobre as irmãs: era extrovertida, alegre, comunicativa, gostava de música, tocava violão e, de vez em quando, entoava algumas canções (fora aluna de Estelinha Egg). Tinha seis filhos, todos homens, um monte de netos e alguns bisnetos, cada um com a sua personalidade. Myrian os agregava. Era o ponto de união da família. Eu a chamava de “tia favorita”. Era uma manifestação de afeto meio exagerada. Ela sabia disso, mas gostava, e ambos ficávamos felizes.

Tia Myrian nos deixou, encantou-se, como diria Guimarães Rosa. A vida, infelizmente, também é feita de perdas. A ausência dela está sendo doída, mas é uma tristeza que precisa ser compreendida e aceita, já que estamos aqui apenas de passagem.

Rubem Alves comparava a vida a uma chama de vela. E dizia que há várias causas para a chama da vela se apagar: uma lufada de vento, a falta de ar, um pingo de água… Mas há também aquela vela que vai queimando, vai queimando, até que a cera acaba e o pavio não tem outra alternativa a não ser apagar.

Myrian de Macedo Portugal Bacellar foi uma chama de vela que se consumiu iluminando.

Clica!céliodois

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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