São mais de 100 mil mortes e um presidente genocida. É obrigação minha, como cronista do maior jornal do país, escrever sobre mais de 100 mil mortes e um presidente genocida, mostrando que eu não sou uma absoluta alienada (como fiz parecer nas últimas colunas, na tentativa de resgatar alguma criatividade, algum humor —porque não aguento mais ler e escrever sobre o óbvio— mas falhei completamente, não fui nem engraçada nem profissional, e agora me envergonho um tanto).
Contudo, eu, que senti muito nesses cinco meses, que intoxiquei meu fígado com remédios para enxaqueca e encarocei todos os músculos das minhas costas com um tenso inconformismo, apenas parei. Não consigo mais sentir nada.
Eu, que sou contra “tocar a vida” ante mais de 100 mil mortes e um presidente genocida, começo aos poucos a tocar a minha. Deixei minha filha brincar no parquinho, fiz sessões de fisioterapia, tenho pensando em cortar o cabelo. Fracassei miseravelmente. A ânsia de resgatar costumes e o desejo egoísta de seguir minha vidinha de branca da zona oeste venceram.
Eu, que fui convidada a fazer um minuto de silêncio no último domingo, não fiz. Não quis. Não acredito que isso resolva qualquer coisa. Que emocione as pessoas. A mim não causa nada. Ao meu pai, eleitor do Bolsonaro, não causa nada. A alguns funcionários que trabalham no prédio onde moro, eleitores do Bolsonaro, esse tipo de manifestação nem chega. Eu cansei de fazer bonito pra minha bolha.
De sentir um frio na barriga porque a jornalista famosa militante me chamou de “necessária”. De esperar o like do intelectual progressista gato que me esnobou no passado. Minha vaidade não serve de nada na lama em que nos metemos.
Como eu posso escrever uma crônica sobre mais de 100 mil mortes e um presidente genocida se comprei várias máscaras pretas porque “ficam bem com qualquer roupa”? Como posso me considerar feminista se estou aqui rindo da galera que passa sangue de menstruação no rosto e chama isso de máscara facial boa pra pele? Todas com aquele sotaque-sinusite de escola cara de Pinheiros. Eu não gosto de menstruar. Acho uma merda. Eu não postei foto gatinha em preto e branco no Instagram. Que esquerda tola nós somos. Pra mim, sagrado feminino é quando, apesar do machismo, vendo uma ideia de roteiro, ganho bem e falo “aleluia!”. E ver esses vídeos, esses desafios, essa besteirada toda me dá vontade de passar sêmen no cabelo e chamar de gel orgânico.
Eu, que participei de muitos grupos de WhatsApp para pensar o que fazer contra o horror, o descaso, a tristeza, apenas parei. Saí de todos os grupos, eu não suporto mais as pessoas que fazem parte deles falando umas para as outras “ai, você é foda”, “ai, para, você que é um gênio”. E os 30% que ainda defendem o Bolsonaro seguem intactos. E nós, culpados pelo fascismo operante, caminhamos com nossas máscaras-focinheiras, pedindo desculpas apenas pelos áudios longos sobre sonhos e queixas.
Que esquerda é essa que deixou isso acontecer e segue deixando? Por que eu nadei em uma piscina no dia em que o número de mortes, certamente defasado, atingiu 100 mil? Porque tenho plano de saúde e porque não tenho caráter.
Eu não suporto mais ir além de mim. Meu corpo tem doído demais e os analgésicos estão perdendo o efeito. E por que eu estou falando da minha dor, do meu limite, quando deveria escrever sobre a dor dos milhares de pessoas que perderam amigos e parentes queridos? Porque, infelizmente, como uma parte significativa da esquerda desse país, eu sou autocentrada e idiota. Estamos na merda.