Tempo

Quem ri por último, Rivotril

Minha primeira crise de pânico foi no aeroporto de Paris. Parece um jeito meio arrogante de se começar um texto, mas eu estava com o desodorante bem vencido, apavorada porque nunca tinha viajado sozinha e o macaquinho pendurado na minha mochila me deprimia demais. Ele ia e voltava numa melancolia assustada que só olhos estatelados de borracha poderiam traduzir. Me toquei que todos nós morreríamos, que minha mãe morreria, que eu morreria, que o bebê cantor Jordy talvez já tivesse morrido porque nunca mais se falou dele, e comecei a passar realmente muito mal.

Li a indicação ‘sortie’ como “você tem sorte, você vai sair daqui”. É um trocadilho escroto pra se começar um texto, mas realmente achei que longe do aeroporto eu me sentiria melhor.

Aeroporto é um lugar horrível porque soma as cinco coisas mais terríveis do mundo: despedida, fila, ser humano, placa indicativa e esperança.

Nos minutos e meses seguintes minha vida foi uma sucessão de saídas que jamais resultavam em bem estar. Eu estava sempre prestes a correr de qualquer novo e idealizado esconderijo. Não existia mais aconchego sem vertigem nem quando eu chafurdava o nariz no meu travesseiro. O cheiro do sebo da minha cabeça, que sempre me deu uma sensação de estar seguro, era agora estranho.

Marquei um psiquiatra na alameda Itu. É mais fácil falar que é medo de avião. Avião voa, avião cai, avião é fechado, avião treme, avião tem cheiro de bafo de pum. Mas não é isso. É mais fácil falar que sou viciada em rotina, que viajar me tira da minha bolha, que ficar longe da minha casa me dá angustia, que é muito difícil pra uma pessoa com mania de higiene dormir em quarto de hotel (já pensou seriamente sobre as cortinas, o carpete e o controle remoto dos quartos de hotéis?) que meu medo de gritar nua pelas ruas aumenta consideravelmente longe dos meus amigos e parentes e hospitais conhecidos. Mas não é isso.

Minha crise de pânico mais idiota foi num supermercado. Eu perguntei onde é que ficava o melão. E me deu uma tristeza profunda fazer essa pergunta. Porque eu não gosto de melão, só compro porque é geladinho e tem a cara mais inofensiva do planeta. Melão nunca pode fazer mal. Se você tiver parindo a alma, vai conseguir engolir um quadradinho gelado de melão. Tinha o amarelo, o laranja e um mais caro numa redinha amarela. Algo sobre um cartão especial do supermercado foi perguntando e aquilo me deprimiu demais. Larguei o melão sufocado na redinha e todas as compras no carrinho. A menina do caixa gritou chamando por mim. Atravessei a rua correndo.

O elevador não demora mais do que contar até 12. Doze bem devagar. Respirando. Calma. Abri a porta de casa correndo. Sentei na privada. Não sabia se era choro ou grito ou morte ou vergonha que ia sair. Não ia sair nada, eu só queria ter a certeza que qualquer que fosse a coisa a sair, eu estava protegida no silêncio não crítico de um eco de esgoto. Me agachei no banho. Pequena, errada, tremendo, feia, possuída, incapaz. Nem melão no supermercado da frente eu conseguia mais. Queria limpar algo que não era sujeira então nem o banho tinha lógica.

Preciso acordar. Mas vai começar tudo de novo. Só mais dez minutos. Mas já são dez da manhã. Preciso acordar. Mas vai começar tudo de novo. Queria dizer que é o calor. Multidão. Gente esnobe. Gente sofrendo. Fritura. Frescura. Falta de assento. Falta de assunto. Trânsito, manobrista, fila, tudo caro, tudo demorado, tudo chato. Mas não é isso.

Estou tomando Efexor e Rivotril. Me sinto bem. Fico de olho na balança pra não passar de 53 kg. Se deixar eu chego fácil nos 58 e daí é ladeira abaixo rolando. Tenho prazer em comer. Eu que pedia sempre meia salada e ficava quebrando palitos de dente ou rasgando guardanapos em fileiras até que o tormento de comer com outro ser humano acabasse…agora tenho fome.

Alguém me conta algo muito forte e difícil e angustiante e eu aguento. Agora eu tenho uma camisinha no meu cérebro e estou imune ao vírus da dor inexplicável.

A pessoa tá se separando ou descobriu um tumor, mas eu tô de olho é no bife à parmegiana do cardápio. Eu tô é pensando no chocolate Lolo que voltou. Tenho uma camisinha no meu cérebro e isso é dar férias para o meu cérebro depois de 34 anos de bate estaca. É estar pela primeira vez num resort com mucamas pra me abanar a cada microgota de suposição.

Obrigada estupidez porque eu tenho fome e sono e sou feliz.

Já estou há um tempo conseguindo supermercado, restaurante, aeroporto, festa, controle remoto de hotel e amor. Tenho dificuldades pra sentir orgasmo mas o Jordy está vivo e tem 25 anos.

o7|10|2013

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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