Refogar cebolas

A Mari entra na cozinha com umas cinco sacolas em cada mão: “Cês podem ajudar a descarregar?”. Estou refogando umas cebolas, ela passa os olhos por mim, “O Antonio não, claro” e sinto uma paz de espírito meio exagerada pra quem foi simplesmente liberado de tirar as compras do carro.

Enquanto meus amigos vêm com caixas e caixas, neste primeiro dia na praia, sigo ali no fogão, mexendo a colher pra cá, mexendo a colher pra lá e pensando por que diabos tanto alívio por tão minúsculo habeas corpus. À medida que o refogado vai ficando translúcido, também se clarificaram as ideias: percebo que o alívio não vem daquela tarefa específica, mas de todas as possíveis e imagináveis incumbências que podem surgir enquanto eu refogar cebolas e das quais estarei liberado. Entendo, em parte, porque gosto de cozinhar.

Escrever dá trabalho. “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”, já sabia o Drummond, “Entanto lutamos/ mal rompe a manhã”. Escrever quase sempre dá errado: “Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça ao vento”. “Todo o tempo”, pois a caça é ininterrupta: no escritório, no chuveiro, na fila do caixa do Frango Assado da Carvalho Pinto –e “Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono.” (Mundo mundo vasto mundo/ se eu tivesse prestado engenharia medicina arquitetura/ não seria uma rima e a métrica ia pro espaço, mas talvez fosse uma solução).

Ter filhos dá trabalho. Antes de eles nascerem você acha que vai botá-los num pedestal, vai contemplar o milagre da existência e depois vai continuar a ler “Guerra e Paz” com sua caneca na mão. (Gargalhada histérica). (Retomada de fôlego). (Mais um pouco de riso). (Travo melancólico). O negócio é que é meio difícil contemplar o milagre da existência –e definitivamente impossível ler “Guerra e Paz”– quando se está ocupado contando medidas de leite em pó, negociando colheradas de verduras por minutos de “Peppa Pig” ou tentando evitar que uma mãozinha recém-saída da fralda cheia de cocô chegue à boca ou à barriga ou à parede, no escuro, às 3h47 da madrugada.

Não bastasse o fluxo contínuo de palavras, Aptamil, “Peppa Pig” e cacas mil, há ainda esses pequenos exus eletrônicos assoviando pra gente de dentro do WhatsApp, do Facebook, do Twitter, do e-mail, do Instagram e de outros tantos anéis do inferno digital, ordenando, como uma assombração num filme B: “Venhaaa! Venhaaa! Venhaaa!” –e o pior é que a gente vai.

Então você começa a refogar cebolas: de uma hora pra outra, desaparece o burburinho ensurdecedor das demandas e só se ouve o crepitar dos cubinhos translúcidos no azeite. É preciso descarregar as compras, arrumar a casa, trocar as fraldas, responder e-mails, terminar o romance, dar “share” em notícias, colaborar em “crowdfundings”, fazer as pazes com o pai, perdoar a si próprio, ler Tolstói, arrumar as estantes, ganhar dinheiro, tomar vergonha na cara, perder a vergonha na cara, comer mais fruta, beber menos, cuidar melhor do seu amor, entender, afinal, se você faz da vida o que realmente deseja ou se simplesmente boia num rio formado por sortes, azares, covardias, conveniências: mas agora não. Agora você só precisa refogar cebolas.

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Antonio Prata – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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