Relacionamentos felizes são um tédio

Como tem sido difícil falar sobre o assunto sem parecer ostentação e sem aborrecer os leitores

Você é casada e feliz, não tem como escrever sobre relacionamento”, brincou meu amigo e colunista Tony Goes, há alguns anos. Lembrei-me disso ao perceber como tem sido difícil falar sobre o assunto sem parecer ostentação e sem aborrecer os leitores. As pessoas querem finais felizes, desde que haja uma história complicada, com choro, decepções, grandes aprendizados, superações, volta por cima.

Tony tem razão. É uma tarefa ingrata falar de perdas, decepções e frustrações quando o coração bate tranquilo e alguém que você escolheu para dividir o ar-condicionado te abraça para dormir todas as noites. Com exceção do primeiro ano com meu novo conje, quando cada um de nós parecia estar em lados opostos de um cabo de força, no quesito drama meu relacionamento é um tédio.

Sobre o começo um pouquinho tumultuado, já dividi em detalhes o que não é inédito na vida de ninguém. Expectativas, frustrações, problemas de comunicação, egoísmo. O que talvez não seja tão comum foram os três meses de terapia de casal, propostos por ele, a constatação de que por muito pouco eu teria jogado fora o melhor relacionamento da vida, alta médica e felizes para sempre –ou “que seja eterno enquanto dure”.

Ou anos seguintes, que já estão indo para a casa dos dez, vivemos lindamente, com uma treta aqui, outra acolá, mas nada que valha um parágrafo. Um tédio para quem acompanha o vaivém amoroso de gente famosa. Uma decepção para quem jura que relações são difíceis, que todo homem é um filho da puta, que as mulheres são histéricas, se transformam em megeras e tudo acaba com um odiando o outro. Bem, são quase dez anos, talvez seja muito cedo e eu ainda volte com o dramalhão que se espera.

Por ora, meu único problema é falta de inspiração. Estou sempre atrás de um motivo para reclamar e me identificar com histórias infelizes. De me sentir sobrecarregada, desvalorizada, injustiçada, mal-amada. Talvez eu devesse incorporar um personagem e escrever sobre aquilo que as pessoas parecem querer. Mas minha realidade é uma história de amor enjoativa aos olhos dos outros.

Saio com minhas amigas, bebo, chego em casa de madrugada, faço barulho. No dia seguinte, tenho que aguentar a ironia. “Ressaquinha, hein?”, pergunta meu marido com um copo de água e um oxyboldine, antes de fechar a porta do quarto e garantir que ficarei em paz para curtir o porre.

“Bonita essa roupa, não conhecia.” Talvez agora ele me pergunte se eu realmente preciso de mais um vestido, se não tenho coisas melhores para investir o dinheiro. Nada. Era apenas um elogio, não uma cobrança do que faço com meus rendimentos.

Também não tem ciúme, esse pequeno inferno na vida de casais, usado por muitos como prova de amor. Mentira. Um dia, eu falava ao telefone com a porta fechada e ele quis saber quem era. Foi há oito anos e era apenas curiosidade. Nunca mais. A ciumenta do casal sou eu. Em uns dois episódios, dei chilique, atormentada por chifres da outra encarnação. Duas vezes em quase dez anos é uma média quase saudável. Por enquanto, gosto muito de gostar só dele e fico feliz que ele goste apenas de mim. A gente diz que é para sempre, desafiando o Renato Russo que canta “para sempre, sempre acaba”. Talvez um dia, mas não hoje. Hoje, estamos muito ocupados um com o outro.

Soube que não pega bem postar foto felizinha e falar que meu marido é tudo isso: gato, gostoso, inteligente, parceiro. Fui alertada de que pode despertar inveja, olho gordo e a relação murchar. Nessas horas, penso que eu também devo ser “tudo isso” para que a gente esteja junto.

Nem uma brigazinha? Bem, eu sou discípula de Marie Kondo e ele, às vezes, deve pensar que mora numa república. Mas convenhamos, o máximo que pode render é um parágrafo. Talvez, valha um texto. Não sei o que é ficar de mal, sair de casa, dormir no sofá, encher a cara para amenizar a tristeza, achar que meu mundo acabou. Não faço mais ideia do que seja isso. E não tenho saudade.

Nem os parentes são motivo de discórdia. Tenho medo de que a coisa desande e que meus pais fiquem ao lado dele, tal carinho e respeito que norteia as relações. Meus sogros moram no andar de cima, o que seria o horror para a maioria. Como eles têm uma vida social ainda melhor do que as nossas, não raramente, me esqueço de que somos vizinhos e me surpreendo quando nos encontramos no elevador. Visitas só com aviso prévio. Minha sogra diz sempre que sou sua nora preferida. Ainda que eu seja a única, não deixa de ser um elogio, que nos meus aniversários chega em forma de joia da família. Como eu disse, um tédio.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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