Não eram cinco da manhã quando tocou o telefone na minha casa. Era o professor: “Paulo, estou passando aí em 10 minutos. Vamos para a Secretaria”. Eu ainda disse, mas professor, eu tenho que tomar banho, fazer a barba, me vestir. Ele respondeu: “Sem problemas, estaciono o carro na frente do prédio e fico esperando. Não demore”. Desci e fomos para a Secretaria. No caminho ele disse que havia ficado a madrugada inteira redigindo um anteprojeto de Lei, criaria o Passaporte Cultural para os circos. Era um calhamaço.
Em linhas gerais, acabava com a Taxa de Polícia e a cobrança do alvará; obrigava as escolas das cidades onde os circos se instalassem a aceitar as crianças na série em que estivessem – era melhor que estudassem um mês numa cidade e depois em outras do que ficassem fora da escola; criava um programa de financiamento aos circos para reforma das lonas, das arquibancadas, dos carros, dos trailers; reabria no Teatro Guaíra o Setor de Circo que contrataria professores para aperfeiçoamento dos circenses que quisessem mandar os filhos; e obrigava, duas vezes por ano, que ao menos um representante de cada circo fosse à Secretaria para mostrar o carimbo dos delegados de polícia no passaporte e os atestados de frequência das escolas, sob pena de não poderem mais obter o financiamento. Para o Setor de Circo no Guaíra nomearia o Laerte Ortega: “Esse é do ramo!”.
O anteprojeto tinha duas inconstitucionalidades: uma lei estadual não poderia legislar sobre as escolas municipais e sobre a dispensa do pagamento de alvarás por órgãos que não fossem do Estado. O professor René deu de ombros: “Quem se sentir prejudicado que ajuíze uma ação de inconstitucionalidade”. A lei, depois de alguns percalços pelo caminho, foi aprovada. Faltava o dinheiro para o financiamento dos circos. Na verdade, o professor sabia que era investimento a fundo perdido, os circos não gerariam renda para pagar o mesmo. Tanto que colocou um artigo dizendo que o financiamento poderia se tornar doação se todos os filhos de cada família circense frequentassem a escola. A Dilma foi acionada mais uma vez e achou uma verba. O professor René achou que era pouco e me disse: “Veja lá nos seus contatos no INACEN – Instituto Nacional de Artes Cênicas”.
O INACEN foi o sucessor do SNT – Serviço Nacional de Teatro, criado no Estado Novo por Getúlio Vargas e pelo ministro da Educação Gustavo Capanema. Era extremamente criticado pela inoperância. Em 1964, assim que tomou o poder, Castello Branco nomeou como presidente Orlando Miranda, empresário teatral no Rio de Janeiro. Assumidamente de direita, e extremamente liberal na economia, como se qualificava, Orlando foi uma bela surpresa. Fez uma gestão magnífica e passou a ser admirado por toda a classe teatral. Os outros generais se sucederam na presidência e nenhum deles tirava Orlando Miranda do cargo, ele segurava a classe teatral e era, assim, um problema a menos. Já velho e cansado, no final do governo do general Figueiredo, pediu demissão e indicou para a presidência um dos seus assessores, Carlos Miranda (nenhum parentesco, o mesmo sobrenome era mera coincidência). Carlos continuou no ritmo do antecessor, recebia os mesmos elogios e foi mantido no cargo por José Sarney. Conheci bem Carlos Miranda, era uma grande figura humana e um gestor público extremamente competente. Quando o professor René falou para que eu checasse com eles a possibilidade de verba para os circos, liguei para o Sylvio Zilber, braço direito do Carlos Miranda. Expliquei a situação e o Zilber, de quem eu já era amigo, disse: “Paulo, traga o doutor René ao Rio. O Carlos Miranda me contou, um dia desses, que despachando com o ministro Celso Furtado (cujo centenário de nascimento se comemorou em 2020) ele comentou que o melhor secretário estadual de cultura de todo o Brasil é o René Dotti. Numa conversa frente a frente, garanto que vocês arrancam a verba”.
Fomos ao Rio, o Miranda nos recebeu e o professor René entregou uma cópia da lei. Carlos Miranda ficou impressionado e perguntou se poderia mandar a mesma para todos os Estados. O professor disse que sim, era claro. Indagou quanto precisávamos. O professor René lhe estendeu um ofício. Carlos Miranda leu e disse: “Doutor René, estamos para lançar, aqui no Rio de Janeiro, a Escola Nacional do Circo. Vou reservar 5 bolsas de estudos, com tudo pago, para os filhos de circenses do Paraná. Quanto ao valor que o senhor está pedindo vou despachar semana que vem com o ministro Celso Furtado uma suplementação orçamentária. Me dê dez dias!”. Uma semana depois, o Zilber me ligou: “Paulo, preciso que vocês mudem o valor solicitado no ofício”. Eu perguntei se tinham conseguido menos. Zilber disparou: “Não, vamos remeter três vezes mais do que vocês pediram. A lei do professor René é uma maravilha. Todo o Ministério da Cultura ficou impressionado e o ministro Furtado disse que não poderíamos deixar faltar recurso para os circos do Paraná”. Assim que ficou sabendo, o professor René abriu um sorriso e disse que às vezes a gente conseguia fazer um gol bonito de se ver.
Depois que saí da Secretaria da Cultura, encontrava o professor e conversávamos geralmente no Fórum ou no Tribunal. Quando voltei à Faculdade de Direito, para fazer o mestrado e o doutorado, cruzava com ele várias vezes. Ele sempre dizia: “Temos que sentar um dia e relembrar aqueles tempos”.
O dia chegaria. Há três eleições atrás da OAB-PR, lá no Parque Barigui, no local que chamam agora de Pavilhão da Cura e que o Rogério Distéfano no seu blog apelidou de “Pavilhão da Chanchada”, eu havia acabado de votar e me dirigia para a saída. De repente, sou tocado no ombro por trás. Virei e vi o professor René com um largo sorriso no rosto. “Paulo, você tem prazo vencendo hoje?” Respondi que não tinha. “Eu também não tenho, estou vindo da cafeteria que fica lá trás do pavilhão, mas não tinha ninguém lá e eu resolvei procurar alguém para conversar. Quando vi você, relembrei que temos um colóquio em aberto há décadas. Vamos lá?”. Fomos.
Pelo jeito, todos os advogados tinham prazos para cumprir naquele dia. A cafeteria estava vazia de clientes. Duas atendentes se olhavam quando entramos. Sentamos numa mesa e pedimos dois expressos puros e duas águas sem gás. Servidos, começamos a relembrar várias das histórias que contei acima. Depois de vários cafés e águas, perguntei-lhe qual fora o momento mais difícil. Ele respondeu que o Teatro da Classe. Seu maior prazer foi ter criado o Nicolau. Duas horas depois, nos despedimos e de vez em quando nos encontrávamos rapidamente. Ele sempre tinha um sorriso no rosto.
Caso o título do livro do Fassbinder esteja certo, agora o professor René, finalmente, vai poder acordar depois da cinco da manhã.