Mural da História – René Ariel Dotti por inteiro – parte III

Nos primeiros tempos de Secretaria, o professor René inventou que era preciso trabalhar aos sábados para dar conta de tantas atividades que ele mesmo inventava e materializava. Foi uma gritaria geral. Depois de exaustivas negociações, chegamos todos a um acordo. Segundo o professor, adotaríamos o “sábado inglês”, ou seja, das 8h00 ao meio dia. O problema era que o meio dia do secretário sempre passava das 13h00 e, às vezes, das 15h00. Os únicos que escaparam foram o Sale Wolokita e o Reinaldo de Almeida César.

Sale inventou um álibi perfeito: tinha de guardar o “shabat”. Reinaldinho achou outro: passava a semana inteira em Curitiba, onde dividia um apartamento com o pai parlamentar. Nas sextas-feiras, depois das 18h00, pegava o carro e voltava para Ponta Grossa, ia visitar a mãe e o irmão. O pai, nos fins de semana, segundo ele, passava quase todo o tempo visitando os correligionários por todos os Campos Gerais. Como filho primogênito, tinha que dar atenção ao restante da família. Desconfio que o Reinaldinho, às vezes, passava a perna no professor. Andava de namorico com a servidora mais bonita da Secretaria. Achavam que ninguém sabia de nada, quando se cruzavam nos corredores faziam que não se conheciam. Ledo engano. Até a foto do José Sarney, que ficava no gabinete do secretário, ao lado da do Álvaro Dias, sabia. O Paraíba, que era o porteiro da entrada da Ébano Pereira, numa manhã flagrou os dois trocando um beijinho e espalhou a história por toda a Secretaria.

Numa sexta-feira não teve jeito. O professor mandou chamar o Sale e o Reinaldo e disparou: “Sale, amanhã você vai pecar. Reinaldo, neste fim de semana você vai ficar sem a comida da sua mãe”. No dia seguinte, os dois estavam lá. Depois do “sábado inglês” o professor sempre carregava o pessoal para a Boca Maldita, afinal, durante décadas, foi o orador oficial do jantar anual da Confraria. De repente, não mais do que de repente, o professor deixou de convocar o pessoal para o trabalho aos sábados. Foi, desconfio, provavelmente, pressão da Dona Rosarita, que estava cansada da ausência do marido em casa nos sábados.

Tempos depois, René teve uma recaída. Numa sexta-feira convocou todos os assessores para o dia seguinte. Bem naquela época estavam ocorrendo as eleições presidenciais. O voto ainda era no papel e a apuração final demorou alguns dias, de modo que, no sábado, já se sabia que o Collor estaria no segundo turno. Brizola e Lula disputavam a outra vaga, voto a voto. Naquele dia, os jornais publicaram os resultados da apuração vindos do exterior. Havia, como sempre, um candidato folclórico, o tal de Marronzinho. A imprensa deu grande destaque à apuração havida em Moscou. Marronzinho tinha conseguido um voto na cidade.

Quando chegamos na Boca, um chato, que está vivo até hoje e vive lá espalhando roda, com uma intimidade que não tinha, bateu na barriga do professor e disparou: “Dotti, o Mazza estava aqui até agora e perguntou pra todo mundo o que leva um sujeito que vive em Moscou a votar no Marronzinho. O que você acha?”. O professor suspirou e respondeu: “Sinceramente, não sei, mas acho que o Mazza deveria falar com o Frias, o dono da Folha de São Paulo, e pedir uma passagem e um monte de dólares para ir a Moscou e investigar o caso. Deveria aproveitar a viagem e conhecer São Petersburgo, uma das cidades mais lindas do mundo”. O chato disse: “Grande ideia, vou procurar o Mazza, acho que ele ainda está na praça Osório esperando o ônibus para voltar para a casa”. Deu mais um tapa na barriga do professor e saiu correndo. Na época, Luiz Geraldo Mazza escrevia no Folhão. A página 2 tinha quatro colunas, hoje são só três: A primeira se chamava São Paulo e era assinada por C.A. (Claudio Abramo). A segunda, Brasília, era firmada por R.L. (Ruy Lopes). A terceira, Rio de Janeiro, por A.D. (Alberto Dines). Na quarta coluna havia um revezamento: Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Salvador. Quando saía Curitiba a coluna era assinada por L.G.M. (Luiz Geraldo Mazza).

Naquela eleição, René ficou com Ulysses Guimarães até o fim, mesmo com o baixo desempenho nas pesquisas. Uma vez desabafou: “O povo é ingrato mesmo, o doutor Ulysses foi um gigante na redemocratização do Brasil e agora os eleitores lhe deram as costas. Em 1960, foi a mesma coisa. O marechal Lott impediu o golpe do Carlos Lacerda contra a posse do JK e elegeram o alucinado do Jânio. Deu no que deu, vinte e tantos anos de ditadura. Ingratidão com o Lott, ingratidão com o Ulysses”. Confirmado o segundo turno entre Collor e Lula, o professor ficou muito preocupado. Achava os dois despreparados para o cargo e com minoria no Congresso. “A corrupção vai grassar, o Parlamento vai virar um balcão de negócios escusos”. Entendia que o Collor era um demagogo, inexperiente e arrogante. Já do Lula apontava a inexperiência, o despreparo e que o PT padecia dum esquerdismo infantil. “Ainda vão ter que comer muito feijão com arroz”. Repetia que estava muito abalado com o resultado do pleito. Não falou, e nunca ninguém lhe perguntou, em quem votou no 2º turno.

Como secretário de Estado, tinha o interesse público como bússola e nunca o vi transigir. Lembro que, no meio da sua gestão, um deputado gaiato (sim já haviam na época, aposto que sempre existiram) apresentou uma emenda na Lei Orçamentária para destinar a quantia, bastante elevada na época, de 30 mil cruzados (os Judas Iscariotes, ao que parece, têm fixação pelo número 30) para uma “entidade sem fins lucrativos” realizar “projetos culturais”. Só que havia um pequeno senão. O dinheiro sairia da rubrica da Coordenadoria de Ação Cultural, comandada pelo já citado Sale Wolokita, ou seja, queria o parlamentar tirar um grande naco do pouco dinheirinho que o bom, na verdade excelente, Sale (juro que ainda escrevo sobre ele) possuía para atender o Estado inteiro. René disse: “Tem gato na tuba”. Tinha.

Chamou o Sidney Davidson dos Santos, que além de causídico era jornalista e sociólogo, seu ex-aluno, que já estava aposentado das lides jurídicas, mas não resistiu ao convite para ser o assessor jurídico da pasta. Apesar da antipatia da gerência d´O Estado do Paraná, afinal quando um jornalista era demitido, Santos, advogado durante décadas do Sindicato dos Jornalistas, era quem entrava com a reclamatória trabalhista, mantinha uma coluna semanal no jornal. Apesar dos protestos da gerência, Mussa José Assis, sem nunca ter recebido uma ordem de Paulo Pimentel, o mantinha como colaborador. Sidney era um advogado experiente e extremamente competente. Saiu em direção aos Cartórios de Títulos e Documentos de Curitiba, e localizou, num deles, o registro da tal entidade sem fins lucrativos. Bingo!

No estatuto social da entidade, figurava como única integrante uma senhora cujo sobrenome era exatamente o mesmo do deputado. Foi fácil descobrir que a dita cuja era a esposa do “representante do povo”. O René bufava. Ligou para o deputado Caíto Quintana, que era o líder do governo, e narrou o acontecido. Quintana disse que a votação seria naquele dia, mas que, como líder, encaminharia a votação aos deputados do MDB para derrubar a emenda. Pediu que alguém da Secretaria fosse à Assembleia para, em algum apuro, fornecer mais elementos. René mandou o Sale e ele me puxou junto com o Sidney para a Casa das Leis. Foi tranquilo, o Caíto encaminhou a votação e os deputados do “velho de guerra”, disciplinados e em maioria absoluta, derrubaram a emenda.

Na volta para a Secretaria, quando passávamos em frente ao prédio do Diário do Paraná, o Sidney disparou: “Eu era estudante de direito e trabalhava ali no jornal. Certa feita, o Vitório Sorotiuk estava discursando na frente da Reitoria e chegaram vários camburões do DOPS para prendê-lo. Ele saiu correndo e no desespero entrou no jornal. Era horário do almoço e eu o único na redação. Facilitei a fuga do Vitório pelo teto do jornal e o Sorotiuk escapuliu pulando de telhado em telhado pelas casas e prédios da vizinhança. Quando os policiais chegaram no velho Diário, o Vitório já estava longe”. Mais tarde, colegas de magistério, Vitório me confirmou a história.

Nada tranquilo foi o deputado. Terminada a votação se mandou para a Secretaria e exigiu ser recebido pelo René. Ninguém presenciou a conversa, mas o “representante do povo” saiu com o rabo entre as pernas e o René nunca mais tocou no assunto.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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