René Ariel Dotti por inteiro – parte IV

Na vigência da Lei Sarney, apareceram na Secretaria da Cultura dois tipos estranhos e pediram para falar com o Reinaldo. Haviam arrecadado uma extraordinária quantia, via citada Lei, e queriam que a Secretaria emitisse um certificado para que pudessem sacar a dinheirama que estava no banco (era uma das exigências da lei). Impressionado com a quantia que diziam ter, muito superior àquelas que a própria Secretaria havia conseguido arrecadar, o Reinaldo, já demonstrando o excelente delegado da Polícia Federal que se tornaria, desconfiou do estelionato e depois de dar uma enrolada nos pilantras, pediu que eles trouxessem os extratos bancários, dizendo que os mesmos eram necessários para as providências administrativas para expedição do tal certificado.

No outro dia, os caras estavam lá com os referidos extratos. Reinaldo deu mais uma enrolada, disse que eram necessários não sei quantos dias úteis para que o certificado ficasse pronto e, na saída dos meliantes, começou a examinar os documentos bancários. As empresas eram médias e pequenas, nenhuma de grande porte e prestígio. Ao ver a documentação, o Reinaldo se deparou com o nome de uma onde tinha um conhecido que lá trabalhava. Foi a campo e depois de uma conversa persuasiva descobriu o estelionato: os caras arrecadavam o dinheiro com a promessa de devolver metade da doação para os diretores das empresas, na conta da pessoa física.

Contou tudo para o professor René que jurou que nem com ordem judicial iria permitir a emissão do certificado. Preferia pagar multa, ser preso, o que fosse necessário. Não precisou tanto. O professor chamou o Leopoldino Abreu Netto e a Rosana Stocchero, que eram os responsáveis pela Lei Sarney na Secretaria, e explicou a situação. Os dois foram em todas as empresas e explicaram que a “doação” não havia sido aprovada. Várias empresas, preocupadas, perguntavam se não poderiam doar diretamente à Secretaria. Com a resposta positiva, a Secretaria conseguiu tocar vários projetos que estavam parados por falta de verbas. Os dois pilantras voltaram para falar com o Reinaldo. Depois de uma longa digressão sobre crimes contra a ordem tributária, estelionato e formação de quadrilha, os meliantes nunca mais puseram os pés na Secretaria.

René também foi um secretário extremamente preocupado com o patrimônio cultural do Estado. Exemplo é o que aconteceu com o Teatro da Classe, fundado pelo José Maria Santos, quando na presidência da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais. Passados alguns anos, o Zé Maria se desentendeu com os seus pares e deixou a direção do Teatro. Na época, a situação da dita associação era desesperadora. O Collor tinha assumido, confiscado a poupança e a associação não tinha dinheiro para pagar o aluguel do Teatro, cujo imóvel pertencia a um Turco, dono de várias lojas de sapato na Praça Tiradentes. Foram despejados.

No dia seguinte ao despejo, deu-se o caso em que o René foi, mais uma vez, dentre tantas, extraordinário. No início de uma tarde incrivelmente calma, sinal de que a tempestade iria cair forte, recebo um telefonema desesperado da atriz Yara Sarmento (que foi vedete do Carlos Machado) e que dava expediente no Sindicato dos Artistas, cuja sede era na Treze de Maio, em frente ao Teatro da Classe.

Apesar da luta de classes entre patrões (produtores) e empregados (atores), a Yara, muito nervosa e chorando, começou a falar. Só entendi que estavam começando a demolir o Teatro do Classe e que eu tinha que avisar, com a máxima urgência, o professor René.

Adentrei a sala dele, sem bater na porta, e narrei o ocorrido. Ele, muito nervoso, perguntou-me o que podíamos fazer. Eu respondi que se o proprietário tivesse um alvará de demolição não poderíamos fazer nada. Se não tivesse, deveríamos chamar a polícia e a fiscalização da prefeitura. O René concordou, pegou o telefone e pediu uma ligação urgentíssima para o Secretário da Segurança Pública, que era o doutor Antônio Lopes de Noronha, membro do Ministério Público e depois seria desembargador pelo 5º constitucional. Noronha, que estava saindo para uma viagem ao interior do Estado, entendeu a apreensão de René e passou, incontinente, a ligação para o seu chefe de gabinete, que era o doutor Wesley. Veterano delegado de polícia, muito amigo e admirador do professor René, Wesley disse que estava acionando naquele mesmo momento as policias civil e militar. Mas alertou: “Se o proprietário tiver um alvará de demolição, os policiais não vão poder fazer nada”. O René respondeu: “É o que temo”. Imediatamente, deu-me uma ordem: “Paulo, pegue o primeiro carro oficial que estiver no pátio, pode ser o que me serve, e vá correndo para a Treze de Maio!”.  Como bom soldado, obedeci. Ainda deu tempo de ouvir o professor René pedir mais uma ligação urgente, desta feita para o Roberto Requião, na época o prefeito de Curitiba. Saindo da sala do secretário, dei de cara com o José Basso, que era o presidente da Associação dos Produtores. Estava mais branco do que a mais alva folha de papel e começou a gaguejar, apesar de veterano dos palcos. Ainda tive tempo de lhe dizer que estava sabendo de tudo e que ele entrasse na sala do secretário. No pátio, entrei no carro do René, gritei pelo motorista e encontrei o Jaques Brand. Jaques perguntou o que estava acontecendo e eu disse: “Entra no carro que eu conto no caminho”. Saímos em disparada.

Quando chegamos na frente do Teatro já estavam estacionadas uma viatura da Polícia Civil e duas da Militar. Os policiais estavam procurando o responsável pela obra. Vários deles cercavam os trabalhadores. Começou a juntar gente. O estrago havia sido considerável, estavam começando a demolição pelos fundos do Teatro e tinham derrubado uma parede inteira e um bom naco do telhado. Havia caliça e restos de tijolos por todos os lados. Um sujeito se apresentou como o mestre de obras. O delegado e o major perguntaram ao mesmo tempo: “Onde está o alvará de demolição?”. O sujeito disse que não tinha. Respirei aliviado. Levou voz de prisão na hora, assim como os demais trabalhadores, que eram mais ou menos uns dez. O Jaques ainda tentou argumentar que eles não tinham culpa de nada. Eram apenas humildes trabalhadores que haviam sido contratados para uma empreitada. O delegado disse: “Calma, doutor. Vamos apenas tomar o depoimento deles e depois os soltamos”. Olhou prá mim e perguntou se eu era o Doutor Paulo da Secretaria da Cultura. Com a resposta afirmativa, me convidou para acompanhar a ida de todos à delegacia. Fui. Enquanto entrava no carro do delegado, vi o Macacheira, extraordinário fotógrafo, chegar com a máquina em punho e entrando no prédio com o Jaques. No outro dia, levou mais de cem fotos para o René Dotti. Ainda deu tempo de ver a chegada da fiscalização da Prefeitura. Gritaram que a demolição estava embargada, começaram a enxotar os populares e passaram uma fita amarela e preta para bloquear a entrada de pessoas no prédio.

O Jaques e o Macacheira voltaram para a Secretaria e deram uma péssima notícia: segundo os fiscais da Prefeitura com a derrubada da parede dos fundos o prédio corria o risco de desabar, a estrutura havia sido atingida. Os funcionários da municipalidade recomendaram que fosse chamado o Corpo de Bombeiros. O professor ligou de novo para o delegado Wesley e ele mandou uma viatura com um major e um tenente. Os bombeiros verificaram a situação e foram à Secretaria e comunicaram ao professor René que as condições eram de alto risco. Dotti perguntou o que poderia ser feito. Os oficiais responderam que o protocolo mandava acionar o Departamento de Obras da Secretaria da Administração, mas havia muito burocracia. Quem poderia resolver a situação era o departamento de engenharia do Banestado, eles eram rápidos. Dotti ligou para um diretor do Banestado e naquele final de tarde dois engenheiros do Banco foram ao teatro, examinaram a estrutura, tomaram umas medidas das paredes e do telhado. Avisaram ao secretário que no outro dia voltariam ao local com o material necessário.

Cedinho, estacionou na frente do teatro um caminhão com uma etiqueta “a serviço do Banestado” e começaram a descarregar uma série de vigas de madeira e seguraram todas as estruturas do prédio. Uma vez por semana voltavam ao local e examinavam a situação. Às vezes, reforçavam as estruturas com mais vigas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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