No outro dia, os caras estavam lá com os referidos extratos. Reinaldo deu mais uma enrolada, disse que eram necessários não sei quantos dias úteis para que o certificado ficasse pronto e, na saída dos meliantes, começou a examinar os documentos bancários. As empresas eram médias e pequenas, nenhuma de grande porte e prestígio. Ao ver a documentação, o Reinaldo se deparou com o nome de uma onde tinha um conhecido que lá trabalhava. Foi a campo e depois de uma conversa persuasiva descobriu o estelionato: os caras arrecadavam o dinheiro com a promessa de devolver metade da doação para os diretores das empresas, na conta da pessoa física.
Contou tudo para o professor René que jurou que nem com ordem judicial iria permitir a emissão do certificado. Preferia pagar multa, ser preso, o que fosse necessário. Não precisou tanto. O professor chamou o Leopoldino Abreu Netto e a Rosana Stocchero, que eram os responsáveis pela Lei Sarney na Secretaria, e explicou a situação. Os dois foram em todas as empresas e explicaram que a “doação” não havia sido aprovada. Várias empresas, preocupadas, perguntavam se não poderiam doar diretamente à Secretaria. Com a resposta positiva, a Secretaria conseguiu tocar vários projetos que estavam parados por falta de verbas. Os dois pilantras voltaram para falar com o Reinaldo. Depois de uma longa digressão sobre crimes contra a ordem tributária, estelionato e formação de quadrilha, os meliantes nunca mais puseram os pés na Secretaria.
René também foi um secretário extremamente preocupado com o patrimônio cultural do Estado. Exemplo é o que aconteceu com o Teatro da Classe, fundado pelo José Maria Santos, quando na presidência da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais. Passados alguns anos, o Zé Maria se desentendeu com os seus pares e deixou a direção do Teatro. Na época, a situação da dita associação era desesperadora. O Collor tinha assumido, confiscado a poupança e a associação não tinha dinheiro para pagar o aluguel do Teatro, cujo imóvel pertencia a um Turco, dono de várias lojas de sapato na Praça Tiradentes. Foram despejados.
No dia seguinte ao despejo, deu-se o caso em que o René foi, mais uma vez, dentre tantas, extraordinário. No início de uma tarde incrivelmente calma, sinal de que a tempestade iria cair forte, recebo um telefonema desesperado da atriz Yara Sarmento (que foi vedete do Carlos Machado) e que dava expediente no Sindicato dos Artistas, cuja sede era na Treze de Maio, em frente ao Teatro da Classe.
Apesar da luta de classes entre patrões (produtores) e empregados (atores), a Yara, muito nervosa e chorando, começou a falar. Só entendi que estavam começando a demolir o Teatro do Classe e que eu tinha que avisar, com a máxima urgência, o professor René.
Adentrei a sala dele, sem bater na porta, e narrei o ocorrido. Ele, muito nervoso, perguntou-me o que podíamos fazer. Eu respondi que se o proprietário tivesse um alvará de demolição não poderíamos fazer nada. Se não tivesse, deveríamos chamar a polícia e a fiscalização da prefeitura. O René concordou, pegou o telefone e pediu uma ligação urgentíssima para o Secretário da Segurança Pública, que era o doutor Antônio Lopes de Noronha, membro do Ministério Público e depois seria desembargador pelo 5º constitucional. Noronha, que estava saindo para uma viagem ao interior do Estado, entendeu a apreensão de René e passou, incontinente, a ligação para o seu chefe de gabinete, que era o doutor Wesley. Veterano delegado de polícia, muito amigo e admirador do professor René, Wesley disse que estava acionando naquele mesmo momento as policias civil e militar. Mas alertou: “Se o proprietário tiver um alvará de demolição, os policiais não vão poder fazer nada”. O René respondeu: “É o que temo”. Imediatamente, deu-me uma ordem: “Paulo, pegue o primeiro carro oficial que estiver no pátio, pode ser o que me serve, e vá correndo para a Treze de Maio!”. Como bom soldado, obedeci. Ainda deu tempo de ouvir o professor René pedir mais uma ligação urgente, desta feita para o Roberto Requião, na época o prefeito de Curitiba. Saindo da sala do secretário, dei de cara com o José Basso, que era o presidente da Associação dos Produtores. Estava mais branco do que a mais alva folha de papel e começou a gaguejar, apesar de veterano dos palcos. Ainda tive tempo de lhe dizer que estava sabendo de tudo e que ele entrasse na sala do secretário. No pátio, entrei no carro do René, gritei pelo motorista e encontrei o Jaques Brand. Jaques perguntou o que estava acontecendo e eu disse: “Entra no carro que eu conto no caminho”. Saímos em disparada.
Quando chegamos na frente do Teatro já estavam estacionadas uma viatura da Polícia Civil e duas da Militar. Os policiais estavam procurando o responsável pela obra. Vários deles cercavam os trabalhadores. Começou a juntar gente. O estrago havia sido considerável, estavam começando a demolição pelos fundos do Teatro e tinham derrubado uma parede inteira e um bom naco do telhado. Havia caliça e restos de tijolos por todos os lados. Um sujeito se apresentou como o mestre de obras. O delegado e o major perguntaram ao mesmo tempo: “Onde está o alvará de demolição?”. O sujeito disse que não tinha. Respirei aliviado. Levou voz de prisão na hora, assim como os demais trabalhadores, que eram mais ou menos uns dez. O Jaques ainda tentou argumentar que eles não tinham culpa de nada. Eram apenas humildes trabalhadores que haviam sido contratados para uma empreitada. O delegado disse: “Calma, doutor. Vamos apenas tomar o depoimento deles e depois os soltamos”. Olhou prá mim e perguntou se eu era o Doutor Paulo da Secretaria da Cultura. Com a resposta afirmativa, me convidou para acompanhar a ida de todos à delegacia. Fui. Enquanto entrava no carro do delegado, vi o Macacheira, extraordinário fotógrafo, chegar com a máquina em punho e entrando no prédio com o Jaques. No outro dia, levou mais de cem fotos para o René Dotti. Ainda deu tempo de ver a chegada da fiscalização da Prefeitura. Gritaram que a demolição estava embargada, começaram a enxotar os populares e passaram uma fita amarela e preta para bloquear a entrada de pessoas no prédio.
O Jaques e o Macacheira voltaram para a Secretaria e deram uma péssima notícia: segundo os fiscais da Prefeitura com a derrubada da parede dos fundos o prédio corria o risco de desabar, a estrutura havia sido atingida. Os funcionários da municipalidade recomendaram que fosse chamado o Corpo de Bombeiros. O professor ligou de novo para o delegado Wesley e ele mandou uma viatura com um major e um tenente. Os bombeiros verificaram a situação e foram à Secretaria e comunicaram ao professor René que as condições eram de alto risco. Dotti perguntou o que poderia ser feito. Os oficiais responderam que o protocolo mandava acionar o Departamento de Obras da Secretaria da Administração, mas havia muito burocracia. Quem poderia resolver a situação era o departamento de engenharia do Banestado, eles eram rápidos. Dotti ligou para um diretor do Banestado e naquele final de tarde dois engenheiros do Banco foram ao teatro, examinaram a estrutura, tomaram umas medidas das paredes e do telhado. Avisaram ao secretário que no outro dia voltariam ao local com o material necessário.
Cedinho, estacionou na frente do teatro um caminhão com uma etiqueta “a serviço do Banestado” e começaram a descarregar uma série de vigas de madeira e seguraram todas as estruturas do prédio. Uma vez por semana voltavam ao local e examinavam a situação. Às vezes, reforçavam as estruturas com mais vigas.