René Ariel Dotti por inteiro – parte VII

Certa feita, o professor René foi procurado pelos professores Oldemar Blasi e Maury Rodrigues da Cruz. O primeiro por décadas diretor do Museu Paranaense, o segundo seu sucessor no cargo. Um famoso botânico e arqueólogo alemão, há décadas radicado no Paraná, havia falecido e não tinha herdeiros. Nas suas andanças pelo Estado, havia recolhido um extraordinário acervo de obras de arte indígena e milhares de plantas, a maioria das quais já desaparecidas da flora do Paraná.

O acervo iria ficar abandonado. Era herança jacente, quando a pessoa morre e não tem herdeiros, os bens são herdados pelo Estado. Era necessário abrir o inventário imediatamente e salvar o precioso acervo para as futuras gerações. O professor René procurou a PGE de novo. Na ocasião, o procurador indicado foi o Jefferson Scheer, que abriu o inventário. Como inventariante, foi nomeado o professor Blasi. O juiz, excelente profissional, resolveu visitar o acervo e simplesmente se apaixonou pelo mesmo. Por mais que o Jefferson fosse falar com ele, peticionasse, pressionasse, o magistrado não encerrava o inventário. Toda sexta-feira pela manhã ia até a residência do falecido alemão e ficava horas admirando as peças artesanais e a riquíssima flora. Depois, passou a limpar as peças, regar as plantas e adubar os vasos. Um dia, o Jefferson me ligou desesperado: “Paulo, estão me deixando louco, eles se revezam, o professor René me liga de manhã cedo, o professor Blasi na hora do almoço e o professor Maury no meio da tarde. Eu não sei mais o que fazer. O juiz não encerra o inventário”. Eu respondi: “Jefferson, diga para eles ligarem para o juiz, você já fez tudo o que podia ser feito”. Parece que deu certo, o Jefferson nunca mais se queixou. O juiz nem aí com os telefonemas.

Ocorre que o professor René estava preocupado. O tempo passava e as peças e as plantas corriam risco. Num janeiro de recesso forense, o advogado falou mais alto e o René ligou para o doutor Wagner Pacheco. Disse que o juiz estava de férias e poderíamos terminar finalmente o inventário com o juiz substituto. O Wagner respondeu que o Jefferson estava de férias, a PGE estava com poucos procuradores e muito trabalho. “Vou mandar uma delegação de poderes e o Paulo peticiona para encerrar o inventário” – argumentou. Fiz o pedido, fomos, professor e eu, falar com o substituto e ele sentenciou, terminando o inventário e dando a propriedade e a posse dos bens ao Estado do Paraná. O acervo arqueológico foi para o Museu Paranaense. A flora foi doada ao Município. Esqueci de avisar o Jefferson da petição que havia elaborado e protocolado. Ele ficou sabendo da sentença pelo Diário da Justiça e foi verificar o processo. Descobriu a minha petição e ficou magoado pela falta de aviso. Mas passou, ficamos amigos e ele, lamentavelmente, no auge da sua capacidade laborativa, morreu precocemente por complicações pós-operatórias de uma cirurgia bariátrica.

Já falei nesse espaço que a maioria das amizades do René eram de 40 anos. Uma das amizades mais sólidas era com os irmãos Lorusso: Moacyr e Danilo. O primeiro era advogado e o segundo professor de ciências atuariais. Moacyr foi meu colega na PGE e o Danilo foi o diretor-geral da Secretaria na gestão do René Dotti. Eram dois sujeitos extraordinários.

Danilo, como disse acima, era visceralmente anticomunista, mas se encantou com a Dilma Pereira, militante do PCB. Dilma veio da Secretaria do Planejamento. Quando o professor René precisava de uma verba para um projeto, acionava a Dilma e ela ficava horas revirando o orçamento da Secretaria. Sempre achava uma saída e o Danilo passou a admirar a Dilma com muita intensidade. Era só elogios. Quando ele assumiu a direção-geral, notou que a Secretaria da Cultura, por ser uma das mais novas, não tinha contínuos em seus quadros, e muitas vezes servidores mais qualificados eram designados para tarefas simples, mas que dispendiam muito tempo. Lembrou-se de que, quando diretor da Faculdade De Plácido e Silva, contratou os serviços da Guarda Mirim e propôs que a Secretaria fizesse o mesmo. O professor René autorizou, Danilo chamou a Dilma, ela achou um espaço no orçamento e foram contratados 20 guardas-mirins. Dez, que estudavam à tarde, trabalhavam pela manhã; outros 10, que estudavam de manhã, trabalhavam à tarde. Cada um deles recebia meio salário mínimo e a Guarda Mirim cobrava uma taxa de administração de 10%.

Pelo convênio firmado a Secretaria, tinha que servir um lanche aos meninos e meninas às 10 da manhã e às 4 da tarde. O professor Danilo foi conferir e constatou, com grande tristeza, que os guardas mirins devoravam o pão com margarina e o copo de café com leite. Começou a conversar com eles e descobriu que muitos vinham trabalhar sem tomar o café da manhã. Nos da tarde a situação era mais dramática, vários vinham à Secretaria sem almoçar. Convocou a Dilma e deu um ultimato: “Você, que é defensora do proletariado, dê um jeito, pelo amor de Deus, de alimentar melhor os meninos e as meninas”. Dilma se virou, mexeu daqui, mexeu dali, e encontrou uma verba para adquirir 30 tíquetes de vale-refeição para cada um todo mês. No primeiro mês, o professor Lorusso fez a distribuição. Bem naquele dia trazia no bolso uma lista de compras encomendada pela esposa. No final do expediente, foi ao Mercadorama da Praça Tiradentes e viu que os meninos e meninas estavam gastando os tíquetes comprando balas, chocolates e até cigarros. Resolveu acabar com a fuzarca. No outro dia, mandou avisar aos guardas mirins que os tíquetes seriam entregues aos pais, eles deveriam comparecer na sala dele no dia 1º de cada mês. Os meninos e meninas, quase todos, não tinham pai, ou não sabiam quem eram ou os mesmos haviam desaparecido antes ou logo depois do nascimento. As mães trabalhavam e não poderiam deixar o serviço. Danilo não se deu por vencido. Disse que não tinha problema. No dia 1º de cada mês, não iria almoçar para esperar as mães. Se elas não pudessem ir na hora do almoço, não haveria empecilho, ficaria na Secretaria depois do expediente até a última mãe aparecer. Dito e feito.

Para o gabinete, no horário da manhã, foi designado um menino de 13 anos, alto, gordinho, mulato claro, cabelo muito crespo e com o rosto cheio. Levou, maldosamente, o apelido de Bochecha. A mãe do Bochecha era faxineira no colégio Sion e conseguiu com as freirinhas uma bolsa de estudos para o filho. De modo que o Bochecha falava e lia um pouco em francês. Um dia, o professor René me disse: “O diretor da Aliança Francesa vai ligar pedindo uma audiência, encontrei com ele ontem e pedi que ele telefonasse para você. Marque no período em que o Bochecha esteja trabalhando”.

Marcada a audiência, o diretor da Aliança entrou na sala do secretário e foi atendido. Quando a conversa se encaminhava para o final, o professor René chamou o Bochecha e pediu que ele falasse em francês com o diretor. O sujeito ficou encantado e o professor René arrancou uma bolsa de estudos, no período noturno, para o Bochecha na Aliança Francesa.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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