Na coluna da semana passada, tentando explicar o massacre de Orlando, lembrei-me desta regra: sempre (ou quase), quando a gente quer muito disciplinar a vida dos outros, é porque, de fato, a gente quer disciplinar a si mesmo e mal consegue. Por exemplo, o assassino de Orlando tentou matar (cem vezes) sua própria homossexualidade reprimida.
Essa regra vale especialmente nos casos em que a repressão parece desproporcional porque o comportamento que se quer reprimir não tem consequência para o repressor.
Exemplo: “A homossexualidade deve ser proibida”; por quê? Talvez, se ela não for proibida, alguém tenha medo de se sentir compelido a ser homossexual. Mas a “permissividade” não faz o monge: ele seria “compelido” só pelo seu próprio desejo.
Bom, alguns leitores me perguntaram se essa regra valeria a cada vez que queremos reprimir os outros ou a cada vez que os odiamos. A resposta não é fácil.
Nem todo assassino está tentando matar uma parte de si mesmo da qual ele não consegue se livrar. Podemos assassinar por mil outras razões (ódio, vingança, estupidez). Mesmo assim, considere o que segue.
Um leitor, Arthur Leandro Lopes, escreve que há quem tenha “ódio ativo de negro sem medo de se tornar negro”. Sim, mas, em regra, nos países com forte segregação racial, o racismo vinga entre os brancos menos favorecidos, que têm medo de empobrecer mais e serem assim marginalizados exatamente como os negros. Ou seja, eles têm “medo de se tornar negros”.
Outro leitor, Julio Jorge Rodrigues, pergunta-se até onde iria a permissividade: os estupradores seriam membros de uma minoria sexual e, “em caso de estupro, ninguém deve intervir e punir”?
Sem sequer entrar nos detalhes das fantasias que podem levar alguém a estuprar, o fato é que nosso quadro jurídico proíbe interagir com quem não consente. Ou seja, nenhuma fantasia me autoriza a usar o outro como eu gostaria, a não ser que ele/ela queira. O sexo com menor de 14 anos é considerado uma violência justamente porque não atribuímos ao menor a plena capacidade de dar seu consentimento.
O estupro, então, é reprimido para preservar a liberdade de todos nós. Sem isso, seríamos expostos à violência de qualquer um que fantasiasse nos impor seu capricho sexual.
Em suma, por necessidades básicas de convivência social, o estupro só pode ser proibido, e ponto. Agora, há casos em que existe sexo sem o consentimento do parceiro e que poderiam ser objeto de um debate moral interessante. As numerosas pessoas que transam com animais, por exemplo, transam com ou sem o consentimento deles?
Mas não vamos nos extraviar. Um outro leitor, Titus, pergunta se “alguém que defenda a pena de morte para os estupradores estaria, na verdade, controlando seu próprio desejo de estuprar”. Ele acrescenta: “Tenho ódio de políticos corruptos porque, no fundo, eu gostaria de estar roubando também. É por aí?”.
Tendo a responder que sim. Para chegar a essa resposta, os critérios são o excesso, o fervor, o zelo dos repressores. Claro, o espetáculo da corrupção dá raiva, mas a vontade de condenar todos a alguma pena de morte (e, por que não, sem processo) é no mínimo uma alerta: em geral, quando queremos punir mais do que é preciso e mais do que exige a lei, é porque queremos punir a nós mesmos. Não é nenhuma surpresa: odeio os corruptos porque vivo numa sociedade que me corrompeu há tempos. Quero tal ou tal outro político na masmorra para me punir de ter pagado um despachante para conseguir minha carteira de volta.
O mesmo vale no caso dos estupradores. Mas não é porque, “no fundo”, seríamos todos estupradores em potencial. De fato, são pouquíssimos os que têm fantasias de estupro e desejam estuprar quem quer que seja. Mas muitos são cúmplices de uma cultura do estupro.
O que seria uma cultura do estupro? É uma cultura onde muitos sabem que nunca estuprariam ninguém, mas, se estivessem num grupo de três ou de 30, todos achando graça, não deixariam de mostrar aos outros que eles também são “machos”. Os mesmos muitos também acham que não passaria de uma brincadeira, a mina estava pedindo, vai que ela acabou gostando”¦ não são todas putas? Salvo a mãe, claro.
Esses muitos, quando pegarem um estuprador em flagrante, vão pedir pena de morte ou gritar “lincha! lincha!”. Porque sabem que o estupro está dentro deles.
Contardo Calligaris – Folha de São Paulo