Millôr: Retrato 3×4 – por Fernanda Montenegro

© Mariana Newland

Millôr, duas sílabas fortes, desconcertantes e gentis, cuja rima pode ser flor e também dor. Os olhos eram de águia, mas, também de pintassilgo, colibri, sabiá. A expressão verbal adquiria nele a força do substantivo. Por isso a palavra lhe vinha sempre multidividida em punhais.

Desgarrado de toda e qualquer geração, flutuava acima daquela em que vivia, nessa terra-de-ninguém, onde é perigoso estar só e, mais perigoso ainda, acompanhado.

Seu ato de viver tinha todas as dúvidas certas. E era um ser mítico para nós que dificilmente e aparentemente lhe conhecíamos a essência. A quem o frequentava regateava o aplauso fácil porque sempre buscou, nos desvãos dessa não-troca, a verdade do gesto, da palavra e da finitude.

Esmiuçava os contrastes e aceitava combativamente as vacilações dos que abdicam.

Estoico diante da glória, “que não fica, não eleva, não honra nem consola”, resistiu sempre a toda e qualquer apoteose, embora, com toda justiça, a ambicionasse.

Como lembrança de uma dura infância de menino órfão, no seu medo, jamais se acovardou. Seu rosto guardava recordações que a memória lutava para não esquecer. Acreditava no perigo da ausência, por isso, sempre estava e nunca ficava. Sua opção era ainda estar vivo quando o ultimo respirasse. Não acreditava em Deus, mas, tinha com ele excessiva intimidade e nessa não-fé, transcendendo, conseguiu chegar aos conclusivos 88 ou 89 anos em pouquíssimos segundos, o que lamentamos, lamentamos, lamentamos.

Era visível que Millôr esteve sempre preparado para o Grande Dia. Algumas decisões tomadas: a de morrer, olhando o sol no horizonte. A de sempre brincar de Deus como uma criança. A de absolutamente só crer no destino. E no final, como um cigano ou um poeta, escutar para sempre o silencio na luz absoluta.

*Texto escrito em 2012, lido na inauguração do Largo do Millôr, entre o Arpoador e a praia do Diabo, no Rio.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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