Assim, já no ano seguinte, 1605, aos 58 anos, Cervantes deu à luz a primeira parte do Dom Quixote. O escritor acumulava desgraças pessoais e familiares sem conta. Porém, Dom Quixote aventurou-se derrubando moinhos, combatendo meliantes imaginários, sonhando com Dulcinéia del Toboso e fazendo leitores do mundo inteiro rirem a mais não poder.
Assim Cervantes se descrevia: “Um homem de barba prateada, grande bigode, boca pequena, dentes sem importância – apenas seis e estes em más condições e ainda pior dispostos porque os de cima não jogam com os de baixo”.
Nos dez anos seguintes, ele não escreveu mais nada de grande valor (apenas peças teatrais nunca encenadas e uma coleção de contos). Pode ser comparado ao nosso Macunaíma que vivia dizendo “ai que preguiça!”
A segunda parte do Dom Quixote (“Mistura de uma descabelada loucura com uma sabedoria sóbria.”) pedia para ser escrita, mas encontramos Cervantes miserável, vacilante e preguiçoso. Ele talvez nunca a tivesse concluído se não houvesse aparecido a continuação – obra de um impostor que se assinava Avellaneda. Apressando o burrico, Cervantes deu a nós a segunda parte em 1615. E foi no ano seguinte que ele saiu de cena. Foi combater moinhos de ventos lá nos píncaros do céu.
*Rui Werneck de Capistrano é construtor de moinhos de vento.