Moïse é a terceira pessoa morta por espancamento em um mês na orla da Barra
O bárbaro assassinato de Moïse Kabagambe faz a ponte entre dois fracassos civilizacionais. Aperta o nó entre Brasil e Congo, enredados há séculos na violência escravista que moldou os dois países. Atualiza a encruzilhada em que a selvageria se impõe e a humanidade se esvai no precipício.
Moïse e sua família fugiram da guerra e da fome, mas depositaram suas esperanças na cidade errada. No Rio de Janeiro, a bestialidade se alastra como metástase, por fora e por dentro do aparelho de Estado. Indícios apontam o envolvimento de milicianos e seus bate-paus no suplício do refugiado congolês.
Na sua gênese, essas máfias impunham a lei do mais forte em lugares esquecidos, inclusive (ou principalmente) pelas autoridades. O tumor foi cevado, as células cancerígenas se desprenderam do foco original e chegaram às areias do cartão postal. Já se nota um padrão: Moïse é a terceira pessoa morta por espancamento em menos de um mês na orla da Barra da Tijuca.
Um policial militar “opera” irregularmente o quiosque onde Moïse trabalhava em troca de migalhas; a família do rapaz diz ter sido intimidada por dois PMs; uma testemunha da execução conta ter pedido ajuda a dois guardas municipais, que a ignoraram. A polícia levou mais de uma semana para prender os criminosos, mesmo tempo que demorou para o quiosque do crime ser interditado.
Prefeito e governador só se manifestaram quando já pegava mal ficar calado. Autoridades federais continuam em silêncio, ainda que a tragédia tenha ocorrido na rua onde o presidente da República tem uma casa. Talvez por isso mesmo.
No livro “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, sobre a brutalidade colonial no Congo sob domínio belga, tornou-se célebre a frase de um personagem para definir as atrocidades que presenciou contra os congoleses: “O horror, o horror…”. A expressão se encaixa de maneira trágica no martírio de Moïse e no que o Rio de Janeiro e o Brasil se transformaram: “O horror, o horror…”.