Da literatura propriamente dita, tirei três rápidas histórias. São as que me vieram à cabeça sem queimar muitos neurônios. Importante, acho eu, é sentir que a aparição do chapéu ou do boné define a condição do personagem. Não é apenas pra enfeitar. A primeira vem de Madame Bovary, de Gustave Flaubert:
“Mas, fosse porque não tivesse percebido a manobra ou porque não quisesse praticá-la, o novato mantinha seu boné sobre os joelhos quando acabávamos de rezar. Era uma dessas coisas heterogêneas, onde se encontram elementos de boina, do chapska, do chapéu redondo, do boné de caça e do de algodão, era uma dessas pobres coisas cuja muda feiura tem profundezas de expressão como o rosto de um imbecil. Ovóide e armada com barbatanas, começava por três abas circulares, em seguida se alternavam, separados por uma faixa vermelha, losangos de veludo e de pele de coelho. Logo depois vinha uma espécie de saco que terminava num polígono contornado, trabalhosamente costurado e de onde pendia na ponta de um cordão muito fino um bordado a fio de ouro. O boné era novo; a pala brilhava”.
Esse é um parágrafo da segunda página do mais famoso romance francês e já foi discutido por altas autoridades em literatura. Alguns intrépidos tentaram até desenhar um boné com essa descrição. Parece que não foram felizes. O boné é literário. Flaubert dizia que observava, observava e tornava a observar. Depois, torturava-se pra pôr em frases soantes, mesmo distorcendo a realidade. Diz-se que o romance inteiro versa sobre a estupidez humana. E a descrição do boné do Charles Bovary, quando ele entra na escola, mostra a condição de estúpido joão-ninguém do personagem.
O segundo caso é o do chapéu em Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Nas páginas 13 e 14 da última e bela edição de clássicos da Abril, Raskólnikov, enquanto caminha pelas ruas pra ensaiar seu projeto, acontece isto:
“Contudo, deteve-se, de súbito, e levou, nervosamente, a mão ao chapéu quando um bêbado, que era transportado numa carroça vazia, não se sabe para onde nem para que, puxada por um cavalo de carga, apontou-o com o dedo, gritando-lhe com todos os pulmões: “Eh, você aí, chapeleiro alemão”. O chapéu estava, de fato, levantado, redondo, sovadíssimo; feito em retalhos, esburacado, cheio de manchas, sem aba e todo corcovado. Entretanto, não foi de vergonha, mas de um sentimento próximo do pavor de que se sentiu apoderado naquele instante.
“Eu sabia, resmungava em sua confusão – eu o adivinhava. Pior não podia ser. Uma coisa de nada, uma distração à toa pode estragar todo um projeto; não há dúvida, este chapéu chama a atenção… Faz-se notar, justamente, pelo ridículo… Preciso de um boné para assentar com meus trapos, não importa o que seja, um velho gorro, mas, nunca essa coisa horrorosa. Ninguém se cobre assim, identificam-me a uma versta de distância e jamais esquecerão disso. Sempre se volta a pensar, mais tarde, naquilo que nos chamou a atenção: eis uma pista… Pois então que se trate de passar o mais despercebido possível. Nadas, são esses nadas que interessam.”
O último caso vem do J. D. Salinger, no O apanhador no campo de centeio. Na página 20 da oitava edição em português tem a descrição rápida do chapéu do Holden Caulfield. Esse chapéu vai acompanhá-lo todo o tempo em suas aventuras até que, lá no fim, Holden o dá de presente à sua irmã Phoebe: “Foi um bocado bom voltar para o quarto depois de sair da casa do velho Spencer, porque todo mundo estava no jogo e, para variar, o sistema de aquecimento estava funcionando em nosso quarto. Tirei o paletó, a gravata, desabotoei o colarinho e pus na cabeça um chapéu que tinha comprado em Nova York, de manhã. Era um desses chapéus de caça, vermelho, com a pala bem comprida. Eu o tinha visto na vitrina de uma loja de artigos esportivos quando saímos do metrô, logo depois que descobri que havia perdido a porcaria dos floretes e tudo. Só custou um dólar. Usava o chapéu com a pala virada para trás — de um jeito meio ridículo, mas era assim mesmo que eu gostava.”
Tiro meu chapéu pra esses chapeuzinhos literários.
Rui Werneck de Capistrano,
autor de Nem Bobo Nem Nada, primeiro romancélere brasileiro.
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