Rabiscar um livro, pra quê? Mostrar muque? Concordar com o autor? Ombrear com o autor? Desafiar o autor? Imagino que, se você tem uma mulher e gosta dela, deveria pegar uma caneta e assinalar as partes que mais gosta! Ah, gosto do cotovelo — sublinho! Ah, a patela é ótima! Três exclamações! E vai por aí.
Neste caso, o livro mostra que passou por mais de um leitor, pois são várias cores de caneta. Caneta, ainda por cima! Por que não lápis, pra ser fácil de apagar? O que mais me chamou a atenção é que a frase sublinhada com mais força não é do Schopenhauer. Ele extraiu de uma carta de um tal Howitt publicada num jornal em 1855. Pra falar dos conflitos entre seres vivos, a carta cita o caso da formiga-buldogue — da Austrália. Se uma viva é cortada em duas, a metade anterior pega a própria cauda com os ferrões e a cauda se defende com o aguilhão. Agarram-se com toda força e o combate chega a durar meia hora.
O mais engraçado é que outros autores de livros sobre os nossos eternos conflitos também já citaram esse caso e dizem que tiraram do livro O mundo como vontade e representação, do Schopenhauer.
Outra história incrível é o dos Ichneumonidas, que preferem ficar no anonimato porque a mãe deles põe ovos dentro das larvas de outros insetos e seus filhotes, quando eclodem, comem as lavras vivas. Rabiscar um livro seria pôr ovos próprios no corpo dele Tudo em nome da sobrevivência.
Daniel Pennac, em Como um romance, traça os Direitos Imprescritíveis do Leitor:
1. O direito de não ler
2. O direito de pular páginas
3. O direito de não terminar um livro
4. O direito de reler
5. O direito de ler qualquer coisa
6. O direito ao bovarismo
7. O direito de ler em qualquer lugar
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali
9. O direito de ler em voz alta
10. O direito de calar
Eu aprovo todos. Por sorte não tem o direito de riscar o livro pra fazer muque. Que acho uma bobeira sem tamanho.
*Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem bobo nem nada, romancélere de 150 capítulos