Você chega em casa depois do trabalho. Sua filha vem toda sorridente dizer pra cheirar os cabelos dela. É o novo xampu de morango, ela diz. E daí pede pra cheirar a blusinha nova. Cheiro forte de morango. Ela está muito feliz, mesmo. Não hesita em trazer o sapatinho novo que a mãe comprou. A sola cheira a morango. Sua filha menor descobre que você chegou e já vem correndo trazer a boneca que a vovó mandou pelo aniversário. Chama-se Moranguinho e cheira, naturalmente, a morango.
Seu nariz está repleto de cheiro de morango. O que será que ainda falta ter cheiro de morango? Você pensa enquanto procura o jornal do dia. Está sobre a cadeira, na sala. Você nota que a tinta de impressão agora é vermelha e “todo o jornal — explica o editorial — passa a recender a morango para acompanhar a nova política do Governo Federal e trazer endérmicos eflúvios para deleite dos leitores”. Você não entende, mas não liga porque nunca entendeu um só editorial do jornal. Deixa-o de lado pra apreciar o noticiário da tevê. No primeiro comercial uma bela mulher delicia-se, virando os olhos e gemendo, com o lançamento do iogurte de morango mais cobiçado da Europa. Um pouquinho do iogurte de morango fica nos lábios carnudos dela, mas logo é sensualmente sorvido por uma ágil língua úmida. Você é acordado do devaneio pela voz de sua mulher chamando pro jantar: é um belo frango ao molho de morangos. Receita da vizinha recém-chegada dos EUA. Você come enquanto as filhas vão trazendo o novo material escolar.
Na capa do caderno de desenhos, um morango enorme. Com cheiro. A borracha e o lápis têm adocicado cheiro de morango. Antes de se deitar, você encontra no banheiro a pasta dental sabor morango, pra adultos e crianças. Na borda do vaso está preso um desodorizante cor-de-rosa pálida. Claro que é de morango. Ao beijar suas filhas, na cama, você sente o cheiro de morango no travesseiro e na colcha. Bocejando, você entra no quarto, à meia-luz. Sua mulher diz pra você não olhar ainda. Ela fica de pé na cama, diz pra você se virar e abre o penhoar. Faz pose pra mostrar a nova calcinha que tem um belo morango estampado no púbis. Com cheiro e o convite impresso: eat me. Você come. Logo depois, sua mulher lembra que você esqueceu de dar o remédio pra tosse pra filha mais nova. Ela vai até o banheiro e traz o xarope. A criança, olhos fechados, engole o líquido pastoso da colherinha. Sabor morango, a criança nunca vai recusar, diz a bula. Voltando ao quarto, você encontra a mulher ligando a televisão porque vai passar Morangos silvestres, do Bergman.
No colo dela, uma tigela. Você avança a mão pra pegar o que ela contém enquanto pergunta o que é. São morangos, diz sua mulher. Você hesita um instante. Mas vê os morangos: vermelho vivo com gotículas límpidas de água. Sua mão continua e traz à boca uma frutinha firme ao toque dos dedos em pinça. Espremida entre os dedos ela solta um líquido gelado na língua. Sua cara se arreganha, a testa franze, a língua quer sair toda pra fora. Ugh! Que é isso, pergunta aflito pra mulher. Calma, meu bem, ela responde, é o novo moranguinho natural sabor limão bravo que eu comprei pra experimentar.
*Rui Werneck de Capistrano só chega em casa depois do trabalho