Rio de Janeiro – Ivan Lessa temia que, quando morresse, algum cartunista iria desenhá-lo de camisola e asinha, encontrando-se com um colega também recém-morto, os dois flutuando sobre uma nuvem. Achava isso de uma total falta de imaginação. Sábado último, quando veio a notícia de sua morte, já antevi o cartum: Ivan sendo recebido numa nuvem por Millôr Fernandes, ambos de anjinhos. Mas o cartum não aconteceu -o horário de fechamento dos jornais nos fins de semana o salvou do lugar-comum.
Leio na internet mensagens acusando-o de abandonar o Brasil, de não ter ficado para “resistir” e de dedicar os últimos 34 anos a falar mal do país à distância. Viva a ignorância. Ivan passou no Brasil os piores anos da ditadura, que foram os da década de 70, e num dos lugares mais expostos: as páginas do “Pasquim”, o maior alvo da censura.
Ali ele criou o humor mais violento que o país já viu, e que só escapava à Pilot pela burrice dos censores. “Amar é… ser o primeiro a reconhecer o marido no Instituto Médico Legal”, escreveu. Ou: “Vomitar, no Nordeste, é sinal de status”. Ou: “O brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também”. E só em 1978, quando a abertura era uma realidade, Ivan partiu para Londres, na contramão dos exilados que chegavam.
Partiu só fisicamente, porque continuou atento e irritado com tudo que acontecia por aqui. Era um Paulo Francis de pavio curto. Mas, ao contrário de Francis, era um escravo do rigor, da data certa, da informação exata.
O Brasil desumano que passava aos olhos de Ivan tinha de disputar espaço com o Rio de 1949 a 1964 que vivia em sua memória, do qual ele se lembrava de todos os endereços, números de telefone, firmas comerciais, marcas de produtos, linhas de bonde, letras de músicas, times de futebol, enfim, do lixo que faz a vida valer a pena. Folha de S.Paulo|13/06/2012.