Ocorre que escrever implica, nesses tristes dias que correm, em falar de figuras repugnantes que dominam a cena política brasileira. Essas inutilidades abjetas seriam ignoradas por nós, exceto se tropeçássemos neles em alguma ruela escura. Bolsonaro, afinal, continua o mesmo – o que não é muita coisa e nem deve ser difícil para ele. Esbraveja, escoiceia, rosna, resmunga. É o campeão de grosserias e de perdigotos por minutos jogados sobre a mesa de reunião. Enfim, corresponde ao apelido que recebeu quando ainda era apenas um soldado a mais no quartel: Cavalão. Eis aqui algo de interessante nesse deserto de ideias em que se transformou o Brasil. Os apelidos.
Ninguém sabe ao certo quem aplicou pela primeira vez o apelido em tal pessoa. Podem até circular anedotas a respeito, mas a verdade é que o apelido é obra coletiva, não tem autor nem assinatura. Mesmo quando existe um duvidoso autor a obra é coletiva, pois é preciso que o apelido seja consagrado coletivamente. E, podem observar, o apelido já nasce burilado, perfeito, acabado, pronto para o consumo por parte da chacota dos grupos onde se originou.
E eis aí o que eu quis dizer e que me interessa. Não a chacota, mas o apelido em si. São raros os que não são perfeitos. Eles caem bem como uma luva ou uma caricatura. Tanto que todos, ao saberem do apelido, se surpreendem: como não pensei nisso antes? Estava na cara, quer dizer, na caricatura.
Acontece que a caricatura, ao contrário da maioria dos retratos, é a verdadeira cara do retratado, a sua alma gráfica, a quinta essência de seu corpo e alma, pois tanto quanto o apelido fisga exatamente isso: a verdade do sujeito. Vale observar que, com o tempo, os caricaturados se tornam cada vez mais parecidos com as suas caricaturas. O exemplo no anedotário da história da pintura é o retrato de Gertrud Stein feito por Pablo Picasso. Durante semanas ele sofreu, fazendo e refazendo sem sucesso o retrato em intermináveis tarde de trabalho. Até que certo dia ele colocou algumas pinceladas aqui e ali e decretou: está pronto.
Gertrud saiu da poltrona onde estivera como modelo e veio olhar o quadro. Espiou daqui e dali, aproximou-se, afastou-se e, mulher decidida como sempre, não deixou por menos:
– Mas não parece comigo, Pablo.
Picasso observou:
– Não se preocupe. Com o tempo você vai se parecer com o retrato.
Eis aí. E foi o que se deu. Com o tempo Gertrud Stein se tornou parecidíssima com o retrato, que ela guardou com muitos cuidados, saboreando, como se fossem para ela, os aplausos que o quadro recebia.
No Brasil, Delfim Neto, esse ministro eterno da economia do país, acertadamente se envaidece e ama ser caricaturado. E, é fácil verificar, ele foi, com o tempo, se tornando cada vez mais parecido com suas caricaturas, que coleciona.
Pois o mesmo que se dá com os apelidos. Quando acertados eles grudam no personagem apelidado e não o largam mais. Apelido bom é para sempre. A razão, como já disse, é simples: o apelido é a verdade, o indivíduo sem persona que o encubra, sem máscara que o disfarce. Dele ninguém escapa.
No caso do Jair, segundo seus colegas de quartel, o apelido que nele se eternizou foi Cavalão. É a sua verdade. Cavalão. Seu ego verdadeiro e indelével. Aquilo que nenhuma maquiagem poderá disfarçar. Pode levar facada, ficar décadas incógnito numa cadeirinha de deputado estadual no Rio de Janeiro, ser eleito presidente, que o sujeito, quando bem apelidado, não se livra do próprio. Continuará, de alma e de corpo, incorporando o apelido, que passa a ser o ego mais indelével de sua personalidade.
Pois tudo isso, nesta sexta feira que termina pluvimedonha, como diria Drummond, súbito percebo o sentido da pornográfica reunião de Bolsonaro e seus asseclas numa sala obscura do Alvorada. Ele está dando vazão a seu apelido de caserna, fisgando seguidores e cúmplices, espalhando-se país afora tal como o novo coronavírus.