Em qualquer país que finja ser uma democracia, uma reunião secreta com um presidente, um deputado federal e um senador em que se proponha grampear um ministro da Suprema Corte a fim de prendê-lo, anular a eleição e manter o perdedor no poder levaria os três à prisão.
Aqui, contudo, há quem enxergue o fato com naturalidade, como o primogênito de Jair, o senador Flávio Bolsonaro, e com ele milhares de seguidores do ex-presidente nas redes sociais.
Ao longo do dia, Marcus do Val deu diferentes versões à imprensa sobre o comportamento de Bolsonaro à proposta apresentada por Daniel “Surra de Gato Morto” Silveira, de colocar uma escuta e tentar incriminar o ministro Alexandre de Moraes.
Em uma live nesta madrugada, Do Val disse que Bolsonaro tentou coagi-lo a participar do plano. À Veja, afirmou que o presidente garantiu que haveria apoio do GSI. À GloboNews, amenizou, explicando que Jair apenas ouviu tudo e afirmou, ao final, que esperava uma resposta do senador. À Folha, que o mandatário também ouviu calado e disse que iria pensar a respeito.
Em nenhuma das versões, Bolsonaro impediu o absurdo ou deu ordens de prisão a Silveira, que relatava um plano de golpe de Estado. Isso vai muito além de simples prevaricação. O silêncio de Bolsonaro seria tão alto que ensurdeceria qualquer democrata. O relato de Do Val é sempre o de um deputado federal que serviu de porta-voz para uma proposta golpista de um presidente a um senador em uma sala fechada com apenas três pessoas.
Ah, mas isso não poderia ser uma arapuca para fazer com que Alexandre de Moraes se declarasse suspeito para julgar o caso porque se tornou vítima do plano golpista? A questão já foi pacificada quando o plenário do STF autorizou que o ministro tocasse em frente o inquérito sobre os ataques à própria corte – a própria ação que levou Daniel Silveira a ser condenado surgiu devido aos ataques que ele proferiu contra ministros do STF.
E, sinceramente, alguém acha que Moraes se declararia impedido por causa disso?
No final, o que ficou é isto: Bolsonaro estava em uma reunião discutindo golpe de Estado. Ponto. Qualquer que tenha sido a razão do tiro, ele saiu pela culatra.
Involuntariamente, Marcos do Val fez um favor à democracia brasileira ao colocar Bolsonaro no centro de uma conspiração. Até agora, ele aparecia de forma lateral, sendo investigado por fomentar atos golpistas ao postar um vídeo questionando o resultado das eleições logo após a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do STF. Agora, o depoimento de Do Val será usado para buscar a cadeia de comando, quiça quebrando o sigilo dele e dos assessores de sua cozinha palaciana.
No dia 9 de dezembro de 2022, enquanto Lula anunciava seus primeiros cinco ministros e a seleção brasileira caía diante da Croácia, nas quartas-de-final, por 4 a 2 nos pênaltis, Bolsonaro quebrava o silêncio após a derrota nas eleições para alimentar o golpismo de seus apoiadores. “Cada um avalie o que pode fazer pelo país”, pedia ele.
“Muitas vezes vocês têm informações que não procedem, e pelo cansaço, pela angústia, pelo momento, passam a criticar”, disse na porta do Palácio do Alvorada.
Agora, com uma arapuca contra um ministro do STF temos o ex-presidente da República no centro de um plano que já contou com ônibus incendiados, bomba plantada em caminhão de combustível, ação judicial para anular urnas, minuta de golpe de Estado em casa de ex-ministro da Justiça e destruição das sedes dos Três Poderes. Todas as informações procedem, faltava apenas a cabeça da cobra. Faltava.