Início do século XX, em uma pequena cidade no Pas-de-Calais, norte da França. A família Van Peteghem, formada pelo patriarca André (Fabrice Luchini), a esposa Isabelle (Valeria Bruni Tedeschi) e seus dois filhos, leva uma vida confortável e esnobe em uma enorme casa, construída em um terreno com uma vista privilegiada. Eles recebem a visita da irmã Aude (Juliette Binoche) e sua filha Billie (Raph), que possuem temperamentos muito diferentes. Enquanto Billie gosta de se vestir como um garoto e se apaixona por Ma Loute (Brandon Lavieville), o filho de um pescador local, Aude é extremamente dramática e preconceituosa em relação aos moradores mais humildes. O que os Van Peteghem não esperavam é ter que lidar com o súbito desaparecimento de pessoas nos arredores, o que atrai a atenção de um policial bastante atrapalhado.
Direção de Bruno Dumont|2016|França|Alemanha|Bélgica|2h03m|
Mistério na Costa Chanel parece ter sido pensado como uma versão cinematográfica para O Pequeno Quinquin, a minissérie lançada por Bruno Dumont em 2014. Novamente partindo de uma investigação policial, o diretor francês repetirá muito daquilo que se viu em seu trabalho anterior, notadamente o humor burlesco num cenário onde a mais simples causalidade parece escapar por entre os dedos de seus personagens.
A primeira diferença entre essas duas inusitadas comédias pode ser encontrada em qualquer sinopse: a questão migratória é substituída pela luta de classes. Aqui, ela será potencializada por um romance entre dois adolescentes: em 1910, uma família de industriais vai ao norte da França para passar o verão em sua mansão litorânea. Simultaneamente, dois policiais investigam desaparecimentos que vêm ocorrendo na região. Entre os humildes moradores locais, e principais suspeitos, está o jovem Ma Loute (Brandon Lavieville), sempre em trajes que o fazem parecer um Popeye desnutrido. Primogênito em uma família de pescadores, ele começa um improvável romance com Billie (Raph), filha destoante dos burgueses, o que fará com que todos tenham de interagir – ou melhor, com que todos tenham de tentar interagir.
André Van Peteghem (Fabrice Luchini), o afetadíssimo patriarca, enxerga, nos habitantes dali, criaturas exóticas dentro de seu zoológico particular. Sua irmã, Aude (Juliete Binoche), é uma espécie de cantora de ópera perdida dentro das mais arquetípicas telenovelas mexicanas. Mãe de Billie, ela é incapaz de retribuir o carinho de sua filha. A dupla de policiais, por sua vez, poderia facilmente atender por Laurel e Hardy. Enquanto o investigador gordo tem a voz fina, inversamente proporcional a seu corpo, seu parceiro é pequenino e quase mudo, o mais estranho personagem neste circo de figuras tão distantes do normal. Sobre a família de pescadores, talvez seja suficiente ressaltar seus hábitos alimentares, cuja principal fonte de proteína, ficamos logo sabendo, é fornecida por parte da horda bípede de turistas que frequentam a região. Quem circula entre os decadentes burgueses e os rudes pescadores é a empregada doméstica Nadège, também ela apaixonada por Ma Loute.
Todos se reunirão na exata metade do filme, depois do momento em que Ma Loute e Billie tentam fugir em um pequeno barco de pesca. Quando ficam à deriva, são resgatados. Sob berros do policial, o casal sorri, trocando olhares. Jovens, cúmplices, apaixonados. Neste exato instante, somente nele, tudo parece possível.
Porém o retrato de Dumont seguirá imparcial: ricos, pobres e policias são igualmente merecedores de um tratamento caricatural, nenhum parecendo menos ridículo do que o outro, às exceções de Nadège e, principalmente, da andrógina Billie, personagem de uma presença luminosa. Seu contraste com aqueles que a cercam produz planos/contraplanos de força e beleza raras.
A pureza de seu olhar encontra par na garota de Hadewijch, interpretada por Julie Sokolowski, e, se aqui teríamos uma versão “de qualidade” para O Pequeno Quinquin, não é apenas às suas próprias obras que Dumont se voltou. Pelo contrário, do homem-pipa do Oito e Meio de Federico Fellini aos pequenos desastres sociais do Jacques Tati de As Férias do Senhor Hulot, passando pelos ângulos de câmera mais famosos de A Palavra, de Carl Theodor Dreyer, é como se a suntuosidade permitida por uma comédia de época, estrelada por alguns dos mais famosos atores franceses, fizesse brotar no cineasta o desejo de se comunicar com um público maior do que o habitual.
Para isso, suas referências ganham teor de homenagem e, aos embates temáticos do roteiro, somam-se alguns dilemas: como colocar em um universo, já há muito estabelecido, um cinema incomparavelmente mais estilizado, sob pena de perder a coerência, pedra de toque dos cineastas autorais? Ou ainda: como manter uma visão de mundo e um estilo bastante particulares sem deixar de arriscar, de experimentar? Bom, durante a projeção de Mistério na Costa Chanel você não pensará em nada disso.