Sete Doidos

1
Camutanga, 44 anos, doido em Ibimirim (Pernambuco). Gostava de dar voltas na praça contando os próprios passos e arengando com quem se atravessasse na frente, atrapalhando sua aritmética. Era muito querido pelos vendedores de cavaco-chinês, porque quando via um deles pedia a qualquer passante: “Brasileiro, me paga um cavaco!”. Muita gente pagava. Morreu de gripe por causa de uma chuva que pegou na calçada (chove pouco em Ibimirim, ele não sabia o que era aquilo). Tremia de febre quando o dono do açougue e um policial o botaram num carro para levá-lo ao Pronto Socorro. “Você vai ficar bom,” disse o açougueiro para tranquilizá-lo. Ele sorriu sem medo e disse: “Já tou ouvindo os anjos batendo as asas.”
 
2
Vera Pollák, 44 anos, de Budapeste, viúva, herdou casa humilde que foi dos pais, mora com a filha Nádia de 10 anos, recebe uma pensão pequena que lhe basta para sobreviver.  Vive num mundo mental de conexões aleatórias. Alimenta-se e organiza-se como um hamster amestrado. Coleciona vislumbres. Ensinou a filha a ler sozinha, usando o catálogo telefônico de 1953. Todas as noites,  após o jantar, as duas mudam as posições dos móveis da sala para esperar o dia seguinte. A mesinha de compensado vai para o lugar da poltrona esfiapada, que vai para o lugar do relógio-vovô, que vai para o lugar da mesa-de-centro de fórmica, que vai para o lugar do porta-garrafas… Ritual de arrastos, espanador em punho, que as duas executam às risadas, e que a mãe explica: “Se deixar tudo igual, o outro dia não vem”.
 
3
Marrafa Graúda, doida na cidade do Porto (Portugal). Circulava pelas ruas envolta em velhos vestidos rendados, roídos de traças, coberta de colares e de pulseiras, bijuterias, uma faixa de miss achada no lixão, aros de latas de cerveja enfiados nos dedos. Andava devagar, solenemente, seguida por um séquito invisível de mucamas, e cumprimentava todos formalmente, inclinando a cabeça. Seu adereço preferido era o enorme leque vermelho e dourado com que se abanava, escondia o rosto, e que fechava com um golpe seco, impaciente, quando o trânsito demorava a dar-lhe passagem. Morava nos fundos de um mafuá. Comia qualquer coisa que lhe dessem. Ninguém na cidade sabia sua origem.
 
4
Bala Bala, 20 anos, doido manso do bairro de Jacarepaguá (Rio de Janeiro). Sua mania eram os jogos de pelada, que ele gostava de irradiar nos campinhos de terra, como se fosse locutor de rádio. Falava com uma velocidade hilária, um vocabulário próprio e o jargão do rádio e da TV. Quando não conhecia os jogadores, inventava nomes alusivos, “Calçãozão”, “Boné”, “Dentinho”. Seu nome vinha de um dos seus bordões preferidos: “Arremesso cobrado pelo flanco direito, bala bala, avança Zuzé com a pelota dominada, corta o primeiro, bala bala, foge pela intermediária, disputa com Danoninho, bola espirra para Quengo que parte no contra ataque, bala bala, sofre o cerco de Josias…” Perguntado sobre o que significava aquela expressão, coçou a cabeça e disse: “É pra fazer o jogador correr mais depressa. Pra dar um gás.”
 
5
Zito Coroinha, 18 anos, de Milagres (Bahia). Desde pequeno manifestou intensa vocação religiosa, fazia promessas de orações uma atrás da outra, prometia 50 Ave-Marias para o ônibus chegar logo, 200 Credos para tirar nota boa na prova, 300 Pai-Nossos para não apanhar quando chegasse em casa. Aos 14 anos arranjou uma batina marrom de cordão puído, e desde então peregrina pela cidade absolvendo pessoas. Um frentista do posto: “Eu te absolvo pelos teus pensamentos pecaminosos.” A verdureira: “Eu te absolvo por teres passado tanto troco errado.” Um cambiteiro de cana: “Eu te absolvo pela primavera, verão, outono e inverno.” Uma menina de olhos arregalados: “Eu te absolvo pelo mal que trarás ao mundo.” Um casal que passa de Bíblia em punho: “Eu vos absolvo por aquilo da noite passada.”
 
6
Abner Abrahams, 61 anos, aposentado, de Palatine (Ohio). Recolhe jornais, sub-repticiamente, enquanto passeia por estações de trem, pelos cafés, pelas drugstores, com seus bigodes oitocentistas, seu chapéu fedora, sua bengala de castão de osso, sua pasta de couro volumosa que sai vazia e volta cheia, porque Abner recolhe jornais já lidos ou esquecidos, qualquer jornal, ele os dobra e guarda sob o olhar discreto de quem já lhe sabe as manias, e quando alguém o interroga ele explica: “É para eu ler quando ficar velho”, com a mente visualizando o monte de jornais que o espera em casa, com metro e meio de altura, onde no fim da tarde ele deposita com ar de triunfo sua recolha diária, e do qual a resignada família subtrai quantidade equivalente enquanto ele ressona; mas quando acorda e toma seu café matinal, antes de trocar de roupa, ele pousa a mão paternal sobre aquele monte de papel, cofia os bigodes e sente-se invadido por uma sensação oceânica de paz futura.
 
7
Madá Tantã, 58 anos, de Divinópolis (MG). Vive de bordar e vender lenços com enfeites de fuxicos, nas escadarias da igreja. De vez em quando dá-lhe uma veneta e ao ver surgir um homem sozinho ela se dirige a ele e diz: “Meu noivo! Meu noivo estava atrasado!  Vamos casar que o padre está esperando!” Todo mundo na cidade já a conhece, de modo que muitos indivíduos se prestam à fantasia inocente de entrar na igreja de braço-dado com ela, ir até o altar, fazer uma reverência, fazer uma mímica perfunctória de que estão trocando alianças, trocarem um beijo casto a meia distância, até que no fim deste ritual ela o empurra sorridente e diz: “Gostei de você não, como marido! Pode ir!…”  E volta para o degrau da igreja, para começar tudo de novo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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