Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” – Hannah Arendt
Bolsonaro desafia as instituições, fala barbaridades, passeia pelo Código Penal, desafia as autoridades sanitárias do seu próprio governo e do planeta, provoca o STF e governadores, nega a gravidade da pandemia e a redondeza da terra, isola-se cada vez mais do mundo civilizado, testa todos os limites, governa só para os filhos, os amigos e os devotos da seita, ou melhor, não governa.
Faz de tudo, enfim, para que abreviem sua permanência na Presidência da República por meio de cassação, impeachment, interdição, renúncia forçada, seja lá o que for. Parece gritar no seu íntimo: “Me tirem daqui!”
Ao contrário dos meus colegas comentaristas, tenho dúvidas se ele quer mesmo dar um autogolpe ou está apenas pedindo pelo amor de Deus para alguém fazer o favor de lhe tirar o fardo pesado do cargo.
Desde o início do seu tumultuado mandato, noto nele uma síndrome suicida de alguém que não dá o menor valor à própria vida nem à dos outros como se o mundo fosse acabar amanhã.
Está sempre em conflito, vive atormentado, fala em tom desafiador, incapaz de dar um sorriso ou fazer um afago em alguém. Vive em permanente combate contra inimigos reais ou imaginários.
Se fosse só ele, já seria um grande problema, mas desconfio que Bolsonaro não está sozinho, longe disso.
A nova pesquisa Datafolha divulgada esta semana me deixou intrigado com a sua resiliência em manter o apoio de um terço da população, não por acaso, a mesma proporção dos que são contra a quarentena e querem a volta ao trabalho e à “vida normal” a qualquer custo, nem que o preço seja a própria vida.
É incrível a identificação do presidente com seu eleitorado mais fiel, alimentado a doses maciças de ódio e fake news nas redes sociais, o que me leva a pensar que esse instinto suicida seja contagioso como o coronavírus.
A pandemia uma hora vai passar, mas temo que o bolsonavírus deixe sequelas mais duradouras e nocivas na sociedade brasileira, já tão radicalizada e intolerante.
Já não se trata apenas de uma questão política ou ideológica, de ser mais ou menos de extrema-direita, conservador nos costumes e liberal na economia, mas de uma categoria de pensamento movida a fanatismo quase religioso.
Só há registro de movimento semelhante na nossa história, guardadas todas as diferenças entre os personagens e as suas motivações, na longínqua Guerra de Canudos, quando um certo Antonio Conselheiro, que também se achava enviado por Deus para cumprir uma missão, levou a população fanatizada de uma vilazinha do sertão nordestino a ser dizimada pelas tropas federais.
Armar toda a população com munição à vontade, para cada um fazer a sua própria lei, como o capitão conselheiro prometeu na histórica reunião ministerial do dia 22 de abril, pode ser o primeiro passo para deflagrar uma nova guerra. De quem contra quem?
No Rio, ela já começou. Em plena pandemia do coronavírus, a Polícia Militar já matou 177 civis no mês de abril, incluindo crianças, idosos e mulheres, um índice 43% maior do que no mesmo período do ano passado. Foi o maior número de mortes causadas pela polícia registrado nos últimos 18 anos.
Na sua tática de morder e assoprar, nesta sexta-feira Bolsonaro resolveu pedir aos seus seguidores que respeitem os outros poderes, depois de ter desafiado o STF na véspera.
Ao mesmo tempo, começava a circular nas redes sociais uma nova convocação de “pessoas de bem” para manifestações no próximo domingo.
Diz o convite:
“Urca, Rio de Janeiro/RJ. Dia 31/5 a partir das 15:00h – Apoio ao Presidente Bolsonaro e às FFAA — Fora Congresso Nacional e STF — Diga Não ao comunismo — Compareça na frente do Quartel — Escola de Comando e Estado Maior do Exército — EEME — Praça General Tibúrcio 125 — Ou vá ao quartel mais próximo de você”.
29|maio|2020