Só não está louco quem interrompeu o isolamento

Mesmo sem fazer quase nada, a não ser trabalhar, falta energia para fazer qualquer coisa

Ao ouvir um colega jornalista contar sobre sua quarentena, percebi que a minha tem sido um fracasso. Assim, no particípio passado, porque continuo trancada em casa e lá se vão mais de cem dias. Cem dias de solidão sem o realismo fantástico de García Márquez, apenas com os sonhos que não fazem o menor sentido, uma epidemia dentro da pandemia. Todo mundo tem sonhado. Os meus são quase sempre uma mistura de Salvador Dalí com “Matrix” e uma pitada de “O Iluminado”. Não sei se são efeito do confinamento, das muitas horas de noticiários, da falta de vento na cara. Não recomendo.

Psicólogos dizem que precisamos de rotina pra não enlouquecer de saudade da velha rotina. O meu colega parece uma fábrica japonesa. Às 10h30 da manhã, quando ainda estou de pijama, decidindo se tomo café da manhã ou espero pelo almoço, ele já escreveu algumas páginas de um livro de ficção. Depois, o workaholic sai para andar com o cachorro, lê durante duas horas tomando um solzinho para garantir a vitamina D, almoça, parte para o segundo turno de trabalho e escreve reportagens. Não sei se tenho inveja ou raiva de gente assim.

Ele não contou, mas certamente entrou em todas as ondas que apareceram desde que nos trancamos em casa. Primeiro veio a ioga. Na sequência, exercícios de respiração, corda, cama elástica, live, Zoom, bolo, pão e agora chegamos ao momento tie dye, aquela técnica de pintar roupas, que só fica bonita quando pagamos uma fortuna numa loja. Feito em casa, por gente sem talento, o visual é de um mendigo que tropeçou numa lata de tinta.

Não aguento mais ficar em casa. Mesmo sem fazer quase nada, a não ser trabalhar, falta energia para fazer qualquer coisa. Tenho a impressão que só não ficou louco quem interrompeu o isolamento. Vejo fotos e imagens de gente nas praias, lotando a calçadas de bares, andando para lá e para cá sem máscara, enquanto cravamos mais de um milhão de casos da Covid-19 e 1.364 mortes nas últimas 24 horas. Quem mesmo está louco?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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