Sobre a linha vermelha

linha vermelha

Na praia, pés fincados na areia molhada. Olhando para o mar sem fim, as ondas vêm e voltam incansáveis – e fazem o sujeito se perguntar: onde termina esta terra pra começar o oceano? Parece ser banal, indagação típica de quem medita com olhos esbugalhados olhando para o horizonte. Esmiuçar o conceito sobre os limites, no entanto, é uma fascinante jornada sobre a natureza que nos cerca e nos entranha.

Para arquitetos, é primordial entender e saber jogar bem com as ferramentas que permitem levantar as fronteiras que apartam ou unem. Arquitetos e urbanistas são, por excelência, segregadores. Ainda que promovam as separações através de membranas invisíveis, a ideia é compartimentar. Ou o contrário. Mesmo que a intenção seja integrar, criar a experiência coletiva em um espaço, o arquiteto ainda precisa trabalhar com a manipulação dos limites. Seja para construir uma casa, onde as paredes separam e protegem, ou com idéias e marretas para demolir muros de um espaço apartado, criando o convívio democrático tão almejado. Nos dois casos, não se escapa da manipulação das fronteiras. O que define estes muros invisíveis? Eles são uma construção mental, ou existem de fato no mundo aí fora?

Um bela mulher exibe seus lábios generosos e vermelhos, amplificados na tela do cinema. É intrigante o modo como as células da pele de seu rosto sabem o exato ponto e momento de se diferenciarem para ser a superfície vermelha dos lábios. Tão claro é tal limite que é possível delinear sobre esta região de seu rosto onde começa a boca e a pele facial termina. As mulheres reforçam esta linha através da aplicação de cores quentes, tonalidades de sangue. A boca é o início do desejo, é o orifício mais visível, é uma forma de sedução e talvez o início da perdição. Prodígio da natureza. Conclui-se então que os limites são criações naturais – e os homens apenas tentam entender.

De olho no computador, a Terra, esta bola de mármore azul, mostra a mesma praia numa escala mais longínqua. Do ponto de vista de um satélite, torna-se claro onde termina a terra para começar o oceano. A escala parece ser fundamental na determinação das fronteiras. Porque, cada vez que se aproxima, as fronteiras tornam-se mais confusas e difusas. Se na praia via-se a onda vir e voltar, a lua carregar a maré e depois trazê-la novamente, não era possível determinar com precisão uma linha precisa fronteiriça. Já para um siri no mesmo lugar, ele sequer perceberia que estava sobre um divisor tão importante. Imaginando lançar uma varredura microscópica, destas poderosas de elétrons e tudo mais, na exata medida sobre a linha que separa o lábio e o rosto daquela atriz, átomos que não se diferenciam em nada uns dos outros seriam observados. A fronteira sumiu e agora tudo é igual. Num zoom mais profundo, seria descoberto apenas espaço vazio, com alguns minúsculos pontos aqui e ali, os núcleos dos átomos. Neste nível, a própria matéria sumiu. A mulher parece emanar de um sonho, da mesma maneira que projeções em uma tela de cinema. Então, um passo atrás para concluir que limites não existem, são criações da mente.

O cérebro, conjunto material constituído de todas aquelas células alongadas com tentáculos encostados uns nos outros, por onde elétrons viajam, como numa malha rodoviária. Este trânsito cria toda sorte de sensações, emoções e pensamentos. Elas se descolam da matéria, como um fantasma, para criar a experiência da mente. O produto imaterial do cérebro. As ideias do arquiteto, os sonhos da garçonete, o livro antes da escrita, a memória. Como é possível definir este limite? O que é a consciência e a matriz que a gerou? A alma e o corpo? Talvez não exista resposta definitiva porque a pergunta está incorreta. Se retirássemos os muros, linhas, demarcações. Juntar a terra e o mar, a boca e o rosto. Se destruirmos o bom e o ruim, o eu e eles, talvez se compreenda que os limites existam por causa de uma necessidade equivocada de dividir.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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