A voz é a única preliminar da qual jamais se pode abrir mão
A voz do povo é a voz de Deus. Mas eu duvido que a voz de Deus seja tão chata.
Tive que trocar de dentista. Eu estava apavorada com o motorzinho, com o vaporzinho, com o jatinho, até que a ficha caiu. Eu nunca tive grandes aflições diante de nenhum desses aparatos —haja vista que sempre pensei neles no diminutivo. Eu não suportava era a voz da pobre odontologista. Uma voz muito muito alta e muito muito aguda. E ela não parava um segundo de falar. Narrava, inclusive, toda a parte que não era propriamente diálogo, e sim ação: “Agora eu vou abrir a gaveta para pegar um algodão. Agora eu abro o lixo. Agora eu jogo fora o algodão usado”.
Uma vez gemi, naquela língua estranha a que somos submetidos quando temos um alargador de borracha metido na boca: “ia-éa-um-oco”. Queria dizer: “Fica quieta um pouco”. Mas, mesmo que eu estivesse implorando com dicção e em um megafone, ela não teria conseguido.
A secretária quis saber por que eu estava desmarcando tanto. Eu coloquei a culpa na falta de grana. Me retornaram: “A doutora topa finalizar o tratamento, e você acerta só quando puder”. Tratava-se, afinal de contas, de uma pessoa muito generosa e, justamente por isso, achei por bem encerrar o trabalho. Eu tinha vontade de quebrar o consultório inteiro cada vez que as notas intensas de suas vogais atingiam a delicadeza de meus sistemas mais abjetos. Seu timbre indecente tinha a capacidade de irromper meu indolente intestino grosso. Era uma espécie de assédio peristáltico. Contudo, ninguém, por mais que tenha uma voz de pato com um nabo entalado no esfíncter, merece a capacidade sanguinária do meu infortúnio.
A voz é uma coisa muito séria. Quem em sã consciência não é apaixonada pelo Sidarta Ribeiro? Certa feita, me indicaram um psiquiatra especialista em crises de ansiedade. Liguei durante um dos meus mais imoderados episódios. A voz do homem era tão vigorosa e afiada que toda a água do meu corpo se agitou. Só deu tempo de trocarmos um “alô, boa tarde, como vai?”, e já o chamei para jantar. Jamais conheci seu consultório, mas frequentei sua casa por uns bons anos.
Sempre que ligo na GloboNews, torço para ver a Natuza Nery —eu acreditaria em qualquer coisa que aquela voz me dissesse. Recentemente, entrevistei a artista plástica Rita Wainer para um podcast e tive vontade de ir para o Japão de ônibus escutando cada uma de suas sílabas. A mesma coisa com a assertividade macia da escritora Milly Lacombe. Eu tomo banho todos os dias ouvindo o esplendor que é a cantora Liniker.
Por outro lado, quando eu ainda era muito jovem, tive um namorado que se transformava num emasculado histérico infantiloide toda vez que ficava putinho. Meu clitóris murchava, secava e caia. A voz é a única preliminar da qual jamais se pode abrir mão.
Durante mais de 30 anos tive o péssimo hábito de encarar seres humanos cujas ondas sonoras ofendessem minha arrogância. Sabe aquele dia em que você tenta almoçar com amigos no restaurante e alguma taquara rachada egoica na mesa ao lado invade sua aura e joga areia nos seus olhos? Minha filha tinha poucos meses, e percebi que ela fazia exatamente a mesma coisa. Olhava feio para todo mundo que lhe ressoasse com uma modulação desagradável. Ela nem tinha ainda o domínio da musculatura do pescoço, mas se contorcia inteirinha para olhar feio para quem poluísse ainda mais o já inviável ar de São Paulo com uma entonação infernal. Temi por seu futuro e parei, pelo menos na frente dela, de ser uma grande vaca. Agora eu apenas mudo de mesa ou de dentista. Mais recentemente, comecei a notar que não suporto minha própria voz.