Tenho um Nelson Rodrigues que vive berrando dentro da minha cabeça
Queria ser dessas mulheres que fazem biscoitos orgânicos assados naturais com sementes de girassol e açúcar demerara para a lancheira da criança. Que sete da manhã combinam um vestido floral com um moletom de algodão pima e um chinelo belíssimo feito de garrafas pet recicladas e conseguem convencer os filhos de que não vão ver televisão coisíssima nenhuma enquanto tomam o café da manhã com granola caseira.
Uma mãe que jamais chega atrasada, com um roupão furado por cima do pijama manchado de caneta Bic (porque ficou lendo até 3 da manhã na cama e dormiu em cima da caneta e ela estourou), com a cervical tão tensa e cagada que a enxaqueca já começou e com a menina já meio envergonhada segurando sua mochila de unicórnios: “mamãe, o portão está fechado de novo, você vai ter de sair do carro e vão ver sua roupa feia e suja”. Mas eu sou quebrada, minha filha, e aparentemente o despertador também.
Queria ser dessas ex-mulheres que o ex-marido diz “é minha melhor amiga” e pede opinião em cor de tênis, nome de dermatologista e aplicação bancária. Que recebe ligação do ex-marido no aniversário, porque não existe dor maior do que você dedicar dez anos da sua vida em amar, escutar, cuidar e engrandecer um parceiro e a amizade então precisar morrer junto com a vontade de dividir um vaso sanitário com pinguinhos de urina. Não tem coisa mais insuportável do que a saudade que eu sinto da gente competindo pra ver quem inventava o melhor apelido pra um conhecido, não tem coisa mais triste do que eu ter encontrado o seu timer temporizador de ovo cozido, que tem uma carinha de ovo profundamente feliz, e ter sentado no chão da cozinha pra chorar de dar murros no peito de tanta dor. Eu te amo como meu único irmão, meu único filho, meu único pai. Você é a única família que pude formar até hoje. O único lugar em que por muito tempo eu pude ficar. E eu vou morrer se você não for meu amigo. Mas você segue tentando me quebrar sem perceber o quanto eu já sou quebrada.
Queria ser dessas filhas que visita a mãe sem avisar. Que leva um bolo feito naquela manhã, com a ajuda da pequenininha que untou a forma e aprendeu naquele dia a falar a palavra untar. E as três gerações comem o bolo conversando sobre qualquer coisa muito bonita e muito simples. E as esperanças de todos os envolvidos com mais de 40 anos de vida se renovam. E daqui 40 anos, quando a neta precisar de esperança, ela vai poder tirar alguma fé dessa cena de sua infância. Mas minha mãe diz que, muitas vezes, prefere o amor dos cachorros. E deve ser porque eu sou quebrada. E tudo a minha volta, desde sempre, parece estar se quebrando, ainda que eu tente, com tanta força, com tanta dor no corpo, juntar pedaços, colar pedaços, rasgar meu corpo pra segurar as pontas daqui e as pontas dali. E dormir exausta e culpada todos os dias desde que nasci.
Queria ser dessas mulheres que choram em cerimônias de casamento, que acreditam em festas de Ano Novo, que se emocionam com chás de bebê. Mas eu tenho um Nelson Rodrigues que vive berrando dentro da minha cabeça. Vai lá, minha filha, procura o erro, o furo, o cinismo, a hipocrisia, a traição, a mentira, o engodo, o deboche, a piada, o flerte, a pulada. E essa procura faz de mim tão quebrada. E todos desfilam tão esburacados e ridículos na minha frente. E eu os convido: vamos rir de você? Eu estou rindo de mim há mais de quatro décadas e é terrível e maravilhoso. Podemos rir de você e então não seremos nem tão doentes nem tão infelizes? Mas quase ninguém topa.
E eu me sinto tão sozinha. E eu queria controlar, não dizer as coisas que quebram as pessoas e as levam pra longe. E eu as perco e fico morta aqui no chão da sala, como estou agora. Eu volto a ser 236 mil bolinhas de gude correndo pelos ralos da cidade a cada pessoa que eu espatifo. Eu te amo tanto, meu amor, tanto. Mas ninguém vai me colar, porque eu sou quebrada e eu gosto de ser assim.