Renan Calheiros. © Antonio Cruz|Abr
No próximo domingo, fará aniversário de três anos denúncia da Procuradoria-Geral da República acusando o senador Renan Calheiros pelos crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Protocolada no Supremo Tribunal Federal em 24 de janeiro de 2013 pelo então procurador-geral Roberto Gurgel, a peça completará impressionantes 1.095 dias de gaveta.
Renan já frequenta o inquérito de outro escândalo, o petrolão, e o Supremo não esboçou a intenção de julgá-lo. Pior: o tribunal não se dignou nem mesmo a marcar a sessão em que decidirá se aceita a denúncia da Procuradoria, convertendo-a em ação Penal. Só depois disso Renan poderá ser chamado formalmente de réu. Juntos, os três crimes de que é acusado podem render até 23 anos de cadeia.
O processo refere-se a um escândalo de 2007. O lobista de uma grande empreiteira entregava à jornalista Mônica Veloso, em dinheiro vivo, recursos para custear a pensão da filha que tivera com o senador, num relacionamento extraconjugal. Na época, Renan teve de renunciar à presidencia do Senado para salvar o mandato. Foi reconduzido ao cargo em 2013, uma semana após a formalização da denúncia.
Originalmente, o relator do processo era o ministro Ricardo Lewandowski. Ele sentou em cima dos autos por um ano e sete meses. Em setembro de 2014, assumiu a presidência da Suprema Corte, deixando para trás os cerca de 1.400 processos que aguardavam deliberação em seu gabinete. Entre eles o de Renan.
O caso deveria ter migrado para a mesa de Joaquim Barbosa. Mas o relator do mensalão aposentou-se. E Dilma demorou a providenciar a substituição. Só em junho de 2015 tomou posse o substituto de Barbosa: Luiz Fachin. Ele herdou o processo contra Renan. Já lá se vão sete meses. E nada. Candidato a réu, Renan continua no comando do Senado. No momento, é o principal aliado de Dilma na cruzada contra o impeachment.
A denúncia da Procuradoria é contundente. Escorada em achados da Polícia Federal, a peça anota que, ao defender-se em 2007 da acusação de que um lobista da empreiteira Mendes Júnior bancara despesas da ex-amante, Renan entregou ao Senado notas frias e documentos falsos.
Segundo Roberto Gurgel, ficou provado que o senador não dispunha de renda suficiente para custear a pensão à jornalista Mônica Veloso. De quebra, descobriu-se que Renan usara notas fiscais geladas também para desviar pelo menos R$ 44,8 mil em verbas do Senado.
O ponto de partida da investigação foi uma notícia veiculada pela revista Veja. Informava que o lobista Cláudio Gontijo, amigo de Renan e empregado da Mendes Júnior, repassava R$ 16,5 mil por mês à mãe da filha que Renan tivera fora do casamento. Na mesma ocasião, entre 2004 e 2006, a empreiteira recebera R$ 13,2 milhões em emendas penduradas por Renan no Orçamento da União. As verbas destinavam-se a uma obra no Porto de Maceió.
Chamado a se explicar no Conselho de Ética, Renan alegara que a pensão à ex-amante saíra do próprio bolso. Dinheiro proveniente de negócios com gado. A Procuradoria desmontou essa versão.
Gurgel anotou na denúncia: “Apurou-se que Renan Calheiros não possuía recursos disponíveis para custear os pagamentos feitos a Mônica Veloso no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2006, e que inseriu e fez inserir em documentos públicos e particulares informações diversas das que deveriam ser escritas sobre seus ganhos com atividade rural, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, sua capacidade financeira”.
O então procurador-geral acrescentou: “Além disso, o denunciado utilizou tais documentos ideologicamente falsos perante o Senado Federal para embasar sua defesa apresentada [ao Conselho de Ética]”. Mais adiante: “Assim agindo, Renan Calheiros praticou os delitos previstos nos artigos 299 (falsidade ideológica) e 304 (uso de documento falso), ambos do Código Penal.”
O Ministério Público Federal havia quebrado o sigilo bancário do senador. Nas palavras de Gurgel, verificou-se que “os recursos indicados por Renan Calheiros como sacados em dinheiro não poderiam amparar os supostos pagamentos a Mônica Veloso no mesmo período, seja porque não foi mencionada a destinação a Mônica, seja porque os valores destinados ao denunciado não seriam suficientes para suportar os pagamentos”.
Além as contas bancárias, a PF esquadrinhara as declarações de rendimentos de Renan. Descobriu coisas inusitadas. Por exemplo: o senador informara que, em 2009, utilizara 118 cheques para realizar os supostos pagamentos da pensão à jornalista. Desse total, constatou a PF, 66 foram destinados a outras pessoas e empresas. Outros 39 tiveram o próprio Renan como beneficiário.
“No verso de alguns destes cheques destinados ao próprio Renan, havia manuscritos que indicam o provável destino do dinheiro, tais como ‘mão de obra reforma da casa’, ‘reforma Barra’ e ‘folha de pagamento’, o que diminui ainda mais sua capacidade de pagamento”, anota a denúncia que o STF mantém na gaveta.
A Procuradoria esquartejou também as alegações bovinas de Renan. Verificou que as notas relativas aos supostos negócios feitos pelo senador em 2006 registram a venda de 765 cabeças de gado. Mas as guias de trânsito animal, exigidas nesse tipo de transação, informam que foram transportados 908 animais.
A PF cotejou datas de venda e as quantidades de animais. O cruzamento revelou que os dados de venda e entrega de gado só batiam em relação a 220 cabeças de gado. animais. Descobriu-se ainda que algumas das guias de trânsito animal anexadas por Renan à sua defesa eram de outros vendedores de gado. As notas fiscais não tinham selo de autenticidade, traziam campos em branco e apresentavam rasuras.
Duas das empresas que supostamente teriam comprado gado de Renan não operavam no ramo. Apontado como comprador de 45 bois do senador, José Leodácio de Souza negou em depoimento que tivesse celebrado qualquer tipo de transação com Renan. O que “confirma a falsidade ideológica dos documentos apresentados”, concluiu a Procuradoria.
A escrituração dos negócios de Renan informava que haviam passado por suas terras 1.950 bois. Mas a PF não encontrou nos registros contábeis nenhum vestígio de despesa de custeio. Tomados pelos balanços, os bois, vacas e reses de Renan pastavam livremente, sem a vigilância de peões. Tampouco foram encontrados gastos com veterinários.
“A ausência de registro de despesas de custeio […] implica resultado fictício da atividade rural, o que explica a espantosa ‘lucratividade’ obtida pelo denunciado entre 2002 e 2006”, anotou a denúncia da Procuradoria. Os lucros mencionados por Renan eram, de fato, portentosos. Em 2002, 85%. Em 2006, 80%.
Detectaram-se furos também no patrimônio declarado à Receita Federal por Renan. Dando-se crédito aos dados lançados no Imposto de renda do senador, realçou Roberto Gurgel, ele mal arranjaria dinheiro para “sua subsistência e de sua família.” Em 2002, por exemplo, a família de Renan teria apenas R$ 2,3 mil mensais para viver. Em 2004, R$ 8,5 mil mensais.
No curso da investigação, a PF ainda descobriu um malfeito praticado no gabinete de Renan. Parte da verba destinada ao custeio das despesas relacionadas ao exercício do mandato foi usada para pagar supostos “serviços” prestados por uma locadora de carros, a Costa Dourada. Chama-se Tito Uchôa o proprietário. Vem a ser primo de Renan. Era um “laranja” do senador em emissoras de rádio e tevê.
A denúncia anota: “No curso deste inquérito, também ficou comprovado que, no período de janeiro a julho de 2005, Renan Calheiros desviou, em proveito próprio e alheio, recursos públicos do Senado Federal da chamada verba indenizatória, destinada ao pagamento de despesas relacionadas ao exercício do mandato parlamentar”. Crime de peculato.
No total, Renan justificou com notas da Costa Dourada despesas de R$ 44,8 mil, em valores da época. Não há sinal da passagem desse dinheiro pelas contas da empresa. Gurgel escreveu: “Não há registro de pagamento e recebimento dos valores expressos nas referidas notas fiscais, o que demonstra que a prestação de serviços não ocorreu, […] servindo apenas para desviar os recursos da verba indenizatória paga pelo Senado Federal”.
Renan inclui a Costa Brava também em suas explicações de 2007. Alegou que parte do dinheiro que usara para cobrir a pensão à jornalista viera de empréstimos contraídos junto à empresa. Coisa de R$ 687 mil. Nada foi declarado ao fisco. E o dinheiro “não transitou pelas contas apresentadas” por Renan.
Renan recebia da Costa Dourada mais dinheiro do que o lucro declarado pela empresa. No ano de 2005, por exemplo, o senador disse ter recebido R$ 99,3 mil em empréstimos da locadora do primo. No mesmo ano, a firma declarou um lucro R$ 71,4 mil. Outro detalhe inusitado: “[…] não houve registros de pagamentos ou amortizações parciais dos recursos”.
Como se vê, não é por flata de matéria-prima que o STF se abstém de levar Renan Calheiros a julgamento. Em privado, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, diz estranhar a pressa com que o Supremo trata as decisões referentes aos inquéritos que o envolvem. Não se cansa de mencionar a lentidão que premia Renan.