Da exclusão à inclusão, a experiência de estar no mundo do artista multigênero
Leitor fervoroso dos diários de Kafka na juventude, Juliano Garcia Pessanha nunca quis escrever uma obra puramente ficcional. Boa parte de seus livros são híbridos entre autobiografia, memórias, autoficção, poesia e ensaios sobre filosofia e psicanálise, partindo sempre de uma incessante autoinvestigação —uma espécie de tara em poder existir, ser um “eu”, ter um ego.
Em “Recusa do Não-Lugar”, publicado pela editora Ubu em 2018 (e, portanto, anterior ao seu mais recente “O Filósofo no Porta-Luvas”, lançado pela Todavia em 2021), ele soma –de forma surpreendentemente meticulosa e ordenada– ao seu trabalho multigênero pedaços de aulas, trechos de apresentações e invencionices maravilhosas, como a passagem em que JP (o próprio autor) mimetiza como Nietzsche escreveria sobre JP. Se ficou confuso, apenas confie em mim: este compilado de muita bagagem de leitura e cultura, coragem, dor, maluquice, sobreposição de estilos e narradores, angústia e salvação está entre as melhores coisas que já li na vida.
“Quantas gerações são necessárias para produzir uma vida inviável?”, Juliano se pergunta, ao mesmo tempo em que acredita ter de habitar um corpo vazio, esburacado e atravessado por problemas psiquiátricos e pulsões para além do princípio do prazer. O escritor “usou”, talvez durante tempo demais, seu profundo conhecimento da obra do alemão Martin Heidegger para justificar sua romantização a um não pertencimento e até mesmo uma certa idealização da psicose. Seus argumentos para um estilo de vida isolado, pouco funcional e bastante deprimido foram, por décadas, defendidos por bons e belos argumentos existencialistas.
Durante a infância (e Juliano nos conta isso neste livro primoroso e também em suas entrevistas, porque assim é sua obra: toda misturada com a realidade, toda acontecendo enquanto o autor se pergunta se sua existência é mesmo real), ele não queria –ou não podia– “se falsificar inteiramente” para entrar em sintonia com corpos que aparentavam estar vivos, mas que, em termos de complexidade humana, nada diziam. Restou-lhe, na juventude, procurar alguma verdade, alguma troca existencial possível, em pensadores e autores como Nietzsche e Kafka.
E a partir deles pôde experimentar até certa arrogância: “Ao passar a me intimizar com a família dos frágeis e dos estranhos moribundos, inverti o jogo: eram eles, os de dentro do mundo, os normalizados, os que viviam no grande engano da aderência, pois a linguagem só acontece quando estamos fora dela, suspensos no susto de haver mundo”.
Por quase todo o seu percurso acadêmico (para o qual se entregou com paixão e afinco, características que nem assim serviram para que esse intelectual completíssimo se autorizasse como professor universitário, o que me faz pensar que ele não quis ser “só mais um”), Juliano foi profundo admirador, conhecedor e interlocutor (ele gosta de conversar com mortos) de filósofos aclamados pela potência “pessimista”, ainda que eu esteja correndo um profundo risco de cancelamento filosófico ao usar esse termo limitante e superficial.
Mas, ao entrar em contato com a obra do psicanalista inglês Donald Winnicott, Garcia Pessanha constatou a precariedade do ego de quem se comportava assim, e na sequência, mergulhando na obra de Peter Sloterdijk, considerado o grande renovador da filosofia contemporânea (ainda que um tanto controverso entre os intelectuais menos adeptos de um pensamento mais solar), o autor pôde ir em direção do Dentro e do self positivo, em contrapartida do “Fora que dignifica o abismo, o self negativo e a incapacidade da palavra poética”.
Numa das passagens mais bonitas do livro, o autor conta que, durante uma aula, ao observar alguns alunos, todos felizes, comportados, bem-arrumados, doidos por algum aprendizado dado, sem a experiência de estarem jogados no mundo de (e da) verdade, meros replicantes de pensamentos e textos, perguntou-se: onde estavam os artistas? Onde estavam as Clarices e as Hildas deste Brasil? Aquelas que faziam da autoinvestigação, da necessidade de existir e do desespero em gritar motivos para sugar tanto quanto possível de outros pensadores e então, a partir deles, poder enfim lançar sua literatura ao mundo.
Não foi bem isso que Juliano escreveu, acho, mas quando o livro é muito bom a gente não sabe muito bem o que foi que o livro contou e o que foi que você contou para ele.