O aumento

Achei que eu merecia comemorar, ganhar um abraço, sair pra jantar fora

Terça tive um aumento. Desculpa, talvez não seja a melhor hora para escrever sobre isso. Não está bom para meus amigos escritores, roteiristas, artistas em geral. Nem para os negros e pobres e professores. Nem para nenhum branco engenheiro que votou no atual presidente e tem adesivo de arma na RAV 4 branca. Minha única alegria em ver essa lama colossal em que nos metemos é saber que também vai dar ruim para o empresário liberal bombadinho que viaja para pegar gringa loira porque brasileira não serve. Triste por estar num barco sombrio a naufragar, feliz por ver algumas pessoas nojentas prestes a economizar no champanhe para se afogar no esgoto da marginal Pinheiros.

Ainda assim, com tudo dando tão errado, com tanta gente horrorosa decidindo alterar livros, leis e memórias, na última terça tive um aumento. E achei que eu merecia comemorar, ganhar um abraço, sair pra jantar fora.

Meu advogado começou o dia me chamando de burra. Achou que fiz tudo errado. Que pedi pouco. Que negociei mal. Que longe dele faço tudo errado. Olha, meu caro, eu recebi um pequeno aumento em um país que recebe crateras gigantescas de descaso a cada segundo. Você não entendeu nada.

Entrei no escritório do meu marido para contar, mas percebi que não era um bom dia para falar sobre isso. Aliás, nunca será. Nesses mais de 20 anos de vida profissional, nunca nenhum homem realmente vibrou com as minhas conquistas. Acho que nem meu pai.

Tentei minha mãe. Quando criança, prometi a ela que seria rica e teríamos uma casa com piscina. Não sou rica, não ficarei rica agora, minha mãe tem medo de piscina e adulto de 40 anos que ainda mora com a mãe faliu na vida em tantos aspectos que daria outra crônica. “Mãe, recebi um aumento!”. Ela me deu os parabéns daquele jeito que me faz marcar várias sessões de terapia para tentar entender porque me sinto tão sozinha quando não estou triste ou reclamando de alguma coisa.

Tentei minha amiga deslumbrantemente gata e bem-sucedida, com a certeza que meu ínfimo sucesso jamais a afetaria. Se um dia eu sair nua na capa da Forbes como mulher do ano corre o risco de ela sentir certa pena dos meus parcos movimentos em prol de um lugar na fila do pão. Ela não atendeu e achei melhor assim.

Minha filha coloca um bloquinho colorido em cima de outro bloquinho colorido e rapidamente procura meu olhar. Eu bato palmas e ela bate palmas e ficamos as duas imersas num labirinto de amor e contentamento. Pois bem, na manhã de terça, eu tinha equilibrado uma bola de ferro em cima de uma bola de fezes e estava desesperada pra que alguém visse. Envelhecer é uma mentira.

Porque sou insistente, saí meio saltitante pelas ruas, já desejosa de uma interlocução qualquer, ainda que rasa e fugaz. Mas as pessoas estavam carrancudas, as ruas, esburacadas, e os moradores da rua debaixo faziam um grupo de WhatsApp para discutir como dar sumiço em um mendigo.

Lembrei que, em 1999, eu tinha uma nécessaire falsificada da Louis Vuitton e dentro dela eu levava, todos os dias, a mesma comida numa marmita. Os restaurantes de Higienópolis eram caríssimos e eu ganhava R$ 250 na época. Lembrei que as pessoas torciam o nariz porque eu morava na zona leste e não tinha estudado em nenhuma daquelas escolas que deixam o sotaque pedante e afrescalhado. De lá pra cá, virge Maria, como trabalhei. Decidi voltar no tempo e levar aquela menina para almoçar no melhor restaurante do bairro. Ela é foda porque, na última terça, apesar de tudo, teve um aumento.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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