É uma espécie de fanfic de garotas, e em se tratando de Holmes o termo “fanfic” é curiosamente apropriado. Diz-se que as primeiras “fan fictions” escritas a sério surgiram justamente na época de Doyle. Quando ele “matou” o detetive no conto “O Problema Final” (dezembro de 1893), os leitores ficaram indignados. Doyle passou a se dedicar a romances históricos e de ficção científica, que ele considerava mais sérios (e que em geral são excelentes). Recusou-se a prosseguir com as aventuras do detetive. O que fizeram os fãs? Começaram a escrever novas aventuras, por conta própria, usando os elementos inventados por Doyle.
Enola Holmes se beneficia de algumas restrições: é uma história para jovens, é uma comédia, é uma “fan fiction”. Digo que se beneficia porque em filmes desse tipo o realismo vai para o espaço antes mesmo do espectador comprar a entrada na bilheteria. Há uma série de “obrigações” das quais a autora já se livra por antecipação.
Numa comédia, acreditamos (sem discutir) em situações inverossímeis, coincidências de arrancar os cabelos, soluções improvisadas para resolver perrengues da história… desde que o resultado seja engraçado, provoque risadas, divirta. A história não tem intenção de ser levada a sério nestes aspectos. Claro que não se pode abusar – e em geral o limite entre o sucesso e o fracasso é a intuição do diretor, de saber quando pode forçar um pouco, e quando não deve.
Enola Holmes está cheia daquelas “lutas mortais” que sabemos inofensivas, porque os simpáticos personagens não podem morrer. Força um pouco a barra nas coincidências-resolvedoras-de-problemas: a toda hora alguém perde um papelzinho no chão na hora em que a detetive está passando. Força na solução miraculosa de criptogramas, de que nem o Sherlock local (Henry Cavill) escapa. Não importa. Não é na verossimilhança dedutiva que o sentido do filme repousa, e sim no fluxo ininterrupto e divertido de peripécias e surpresas.
Isto projeta Enola Holmes num patamar um tanto mais leve e menos realista do que outro filme holmesiano igualmente simpático, O Enigma da Pirâmide (“Young Sherlock Holmes”, 1985, Barry Levinson), dirigido a um público semelhante, mas com um tipo de desfecho trágico que a série Enola Holmes dificilmente vai arriscar.
A série usa um truque narrativo arriscado, que é o da “quebra da quarta parede”, quando um ator olha para a câmera e diz algo dirigido à platéia. No presente caso, acho que funciona bem. O cinema de vanguarda do século passado usou isso para desassossegar as platéias bovinas e obedientes dos anos 1960. Jean-Luc Godard fez desse recurso uma de suas “assinaturas” típicas. Era uma provocação, uma alfinetada.
Não é o caso, aqui. Enola comenta o tempo todo as peripécias, dirigindo-se ao público: “Calma, vou explicar…”, “Ih, as coisas não saíram como eu pensava…” etc. Ela o faz na velha tradição teatral das farsas e dos vaudevilles, onde se consolidou o divertido recurso do “à parte”:
O Marquês de Chantilly e a Duquesa de Petigateau estão paquerando no caramanchão.
MARQUÊS
Ah, Mademoiselle, um dia ainda vos confessarei as cenas que me vêm à mente quando estou na vossa companhia!…
DUQUESA
Oh… caro Marquês… mal posso esperar por esse momento! (à parte:) A esta altura eu já estou achando as minhas cenas mais interessantes do que as dele.
O traço essencial do “à parte” é que a frase, mesmo pronunciada em voz alta, não é escutada pelo personagem que está a centímetros de distância. Há um pequeno rasgão no real: naquele instante, a atriz reconhece brechtianamente a existência de uma platéia que está vendo tudo – e dirige-se a ela, numa voz que não é escutada pelo ator que continua apenas “personagem”.
O “à parte” de Enola não é o mesmo “à parte” de Anna Karina nos filmes de Godard. É uma licença narrativa que figura nos estatutos universais da comédia, onde, por definição, o realismo só vai até um certo ponto. Pode virar um cacoete, quando dá muito certo, e artistas como Dercy Gonçalves, Renato Aragão, Jorge Dória e outros ficaram famosos por comentários dirigidos ao público.
(O “à parte” se confunde às vezes com o “caco”, que é um mero enxerto de falas do ator no texto propriamente dito, sem necessariamente quebrar a “quarta parede”. Muitas vezes é improvisado na hora, e quando dá certo é repetido nas encenações seguintes.)
Outro aspecto interessante de Enola Holmes é o fato de apostar com força no desenho de “casal de protagonistas equilibrado”, que podemos simplificar na fórmula “mulheres inteligentes com iniciativa, e homens mais tímidos e retraídos, que aceitam sem problema o papel de coadjuvantes”. Não é nada novo, e basta ver o cinema norte-americano dos anos 1940 para reencontrar Katherine Hepburn / Cary Grant. Ou basta lembrar dos papéis de Neo e Trinity em Matrix, ou (na literatura) de Hari Seldon e Dors Venabili no Prelúdio à Fundação de Isaac Asimov.
Neste filme para adolescentes, o casal jovem (Millie Bobby Brown e Louis Partridge) segura bem o que o pessoal chama de-boca-torta “o espírito Malhação”, sem que isso atrapalhe demais o restante da narrativa. Que não pode ter só romancezinho, precisa ter um leve suspense, e tem; precisa de uma reconstituição de época baseada em mais coisas do que cartolas e cabriolés, e tem; precisa de humor e sátira, que neste caso acabam contribuindo positivamente para o romancezinho em si.
Sherlock Holmes é o meu personagem literário preferido, desde os dez anos, e por isso mesmo procuro ser magnânimo quando avalio as barbaridades que o cinema costuma praticar com ele. Minha única exigência é que se mantenham as características básicas do personagem, e que ele seja tratado com respeito – este, para mim, foi o grande ponto fraco do Xangô de Baker Street de Jô Soares, que achincalha o detetive.
O Sherlock destes filmes (Henry Cavill) leva mais jeito para Superman do que para detetive; mas pelo menos o personagem é tratado com naturalidade, sem se transformar numa série de cacoetes sartoriais.
Enola Holmes tem ainda como qualidade positiva a afinação entre roteiro e montagem, numa narrativa rápida que muitas vezes resume em poucos planos velozes uma ação complexa que não havia necessidade de mostrar em detalhe. E na forma descontraída como manipula o tempo narrativo, puxando para a frente, para trás, re-exibindo cenas para esclarecer detalhes.
O cinema de hoje em dia abusa da montagem picotada, que a torto e a direito deixa planos na tela por menos de um segundo. Diz-se que é porque o público de menos de vinte anos só assiste um filme se for assim – se as tomadas demorarem muito tempo na tela eles adormecem. Não sei. Tudo é possível. Por mim, todo “filme para jovens” poderia ter o ritmo narrativo e o senso de timing destes dois dirigidos por Harry Bradbeer e escritos por Jack Thorne.