Contra o habeas corpus pra macharada

© John-Macdougall|AFP|Getty-Images

Uma certa macharada ficou histérica com o manifesto de Catherine Deneuve & grande elenco. Parecia um gol de final de campeonato. O saloon do Velho Oeste, agora instalado nas redes sociais, veio abaixo — nem a chegada do pistoleiro Shane ao vale do Wyoming, no filme Os brutos também amam, foi tão zoadenta.

A bela de Repulsa ao sexo defendeu o direito à cantada e criticou o exagero de grupos feministas, nesta mesma semana do protesto enlutado em premiação de Hollywood. “Nós defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”, escreveu. Nos trópicos, Danuza Leão, no jornal O Globo, esquentou ainda mais a chapa: “Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana para ser feliz. Viva os homens.”

A histeria de uma certa rapaziada, célebre ou anônima, chamou a atenção deste cronista envelhecido em barris de carvalho e machismo. O recado da belle de joursoou aos ouvidos de milhares de homens como se fosse uma anistia, uma licença para a bandalheira, um “liberô geral”, um gol de Copa do Mundo contra o time feminista, um cala-boca nas vozes e hashtags que clamam por igualdade e tratamento digno.

AgoraSomosNosPorcosChauvinistas de novo na fita.

Por trás de todo homem — grande, médio ou pequeno — há uma ficha corrida de violências e assédios criminosos ou machistices de varejo. Nada inocente, confesso o quanto já fui inoportuno, amada Séverine, digo, Catherine, aqui já confundindo personagem com vida real. O quanto, ao achar que estava dando apenas uma cantada, ave!, importunava miseravelmente — alcoolizado ou não, pouco importa. E haja ressaca moral na solidão da muvuca-jurubeba, afinal de contas, importunar nunca rende o que se pretende, avançar ao sinal do “não e não e não” jamais vigora.

Moço, pobre moço, gaste o latim com uma cantada elegante, isso nunca foi proibido nem fez parte da plataforma dos muitos e diferentes grupos feministas. Não tome o manifesto da amada atriz francesa como um habeas corpus para a velhacaria selvagem ainda em voga. Mire-se no exemplo de um filme no qual a personagem de Catherine (Geneviève) desperta o romantismo do jovem mecânico Guy Foucher. Eternamente em cartaz nos nossos inconscientes: “Não há guarda-chuvas para o amor” (1964). Uma lição contra todas as guerras.

Não é de hoje essa discussão, amigo. Já deu tempo de sacar o que pode e o que não deve. A cantada nunca esteve proibida, como querem fazer parecer os inimigos das feministas. Vamos lá, garoto, prove a sua delicadeza. Será um bom exercício, no mínimo.

Não há nada para comemorar no manifesto das francesas, macharada. É um gol contra ou um gol de mão, pelo menos. Só um certo radicalismo nos educa, aponta o rumo das ventas da sensibilidade. Somos, historicamente, muito folgados e mimados. Chega de mimimi do tipo “não se pode nem mais dar uma cantada” etc. Não é disso que as feministas, que você tanto ironiza no Twitter e Facebook, estão tratando. O jogo é mais bruto. Creio que não careço aqui repetir as estatísticas de violência contra as mulheres.

Desculpa, querida Catherine, sigo amando a ti e ao conjunto da obra, mas é que amacharada compreendeu o manifesto como um álibi, licença para qualquer coisa, um habeas corpus para seguir a mesma brutalidade. Estou fora.

Beijos, como se estivéssemos no último metrô de Truffaut.

Xico Sá|El País

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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