The problematizando show

Programa passa 24 h por dia e só termina com extermínio de um dos grupos

A banda toca e o apresentador atravessa o palco numa corridinha serelepe: “Vai começar mais um….” –a plateia responde, em coro, “Pro-ble-ma-ti-zan-doooooo!”.

De vermelho e à esquerda do palco (naturalmente), o time da esquerda. De azul e à direita do palco (naturalmente), o time da direita. O apresentador gira um globo cheio de papeizinhos. “E pra começar, vamos problematizaaaaaaar…..” Abre o papelzinho sorteado: “Chapeuzinho vermelhooooo!”.

As equipes se fecham como times de vôlei num intervalo, confabulando. O time da direita é mais rápido e aperta a campainha: pééééééé! “Começa pelo nome, né? Por que é vermelho esse chapeuzinho? Comunismo! Em segundo lugar, o conselho da mãe: não vá pela floresta. Ou seja: não inove. Não siga seus impulsos individualistas. A mãe é o estado controlador! Opressor! Ir pela floresta é um jeito disruptivo de fazer as coisas. E o que acontece? Ela se ferra! Chapeuzinho Vermelho é uma aula sobre como podar as asas do empreendedorismo e da inovação!” Palmas.

É a vez da esquerda. “A mãe não é o estado! A mãe é a tradição! Chapeuzinho é a juventude! A mãe é Nixon, é Damares! Chapeuzinho é Janis Joplin! O lobo é uma metáfora reacionária para os riscos da subversão. Pra terminar, a menina comete um (aspas manuais) ‘erro’ e é (aspas manuais) ‘salva’ por três caçadores homens brancos héteros cis: precisa falar mais alguma coisa?” Palmas.

Segundo quadro da competição. Objeto inanimado. O apresentador sorteia. “Liquidificador”. Os dois grupos confabulam. A esquerda aperta a campainha: péééééé! “Liquidificador é de direita! Está para culinária como a indústria cultural está para a arte! O capitalismo pega todas as diferenças e transforma num tutti-fruti amorfo!” A direita rebate: “Que que parece ter passado por um liquidificador? Budapeste, Varsóvia, Leningrado de 1965 ou Nova York, Paris, Londres? Liquidificador é a ditadura do proletariado! O capitalismo é o sistema do multiprocessador!”

Terceiro quadro: frases aleatórias. O apresentador lê “The book is on the table”. Pééééée: a direita começa. “Por que ‘book’? Por que não ‘the videogame’ está sobre a mesa ou ‘the ball’ ou ‘the gun’? Tão vendo o viés?! Acham que é inocente esse livro? Daí pra ‘The Paulo Freire’s book is on the table’ ou ‘O Capital is on the table’ é um pulinho. Escola sem partido, já!”

A esquerda rebate: “É uma frase normativa. Metonímia de um mundo em que cada coisa tem seu lugar definido. O livro sobre a mesa. A mesa no meio da sala. A família heterossexual em torno da mesa. O rico no topo, o pobre na base. Por que não ‘the table is on the book? The book is in the sky? The book and the table are in the skies with diamonds?’”

O apresentador espirra. Está resfriado. Mas a esquerda e a direita imediatamente pééééé! Falam ao mesmo tempo. A esquerda: “Espirro é uma reação xenofóbica do corpo/estado! É a tentativa de expulsar o diferente, de barrar a alteridade, é a catapulta por trás do muro trumpista! Hoje a ciência sabe que nosso corpo é uma colônia de milhões de organismos! Há mais células de bactérias dentro da gente do que células com o (aspas manuais) ‘nosso’ DNA. Contra o espirro! Viva o inspiro!”. Direita: “Espirro é a estratégia do vírus da doença comunista! O vírus cria o espirro pra se propagar! A Rússia começou a espirrar em 1917 e em algumas décadas toda a Europa do leste estava tomada pelo muco rubro!”.

O programa é ao vivo, passa 24 horas por dia e só termina com o extermínio de um dos grupos. Ou de ambos. O placar atual é 7×1 para a direita.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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