Na busca da loucura alheia, ele encontrou a dele

O terapeuta me conta que já não sabe mais qual delas é a psicótica

Duas senhoras da minha família, tia Ana e tia Marta, moram em casas vizinhas e não se desgrudam. Tia Marta, 65 anos, teve um surto psicótico após um divórcio e desde então toma remédios que tia Ana, 75 anos, lhe dá pessoalmente todas as manhãs.

Pelo tanto que se parecem na forma de andar e falar, as pessoas do bairro as tratam como irmãs. Mas sequer são consanguíneas: tia Ana é da família da minha mãe; tia Marta, da família do meu pai.

Passei os últimos anos tentando convencer tia Marta, que faz consulta online com o psiquiatra da família, a fazer terapia também. Em paralelo, eu argumentava com tia Ana para que me ajudasse a convencer tia Marta sobre o tratamento. Arrumei, inclusive, um ótimo analista, que iria até tia Marta caso ela não conseguisse sair.

Um dia, tia Marta —que, como expliquei, é psicótica– me ligou para dizer que estava cansada de cuidar da cabeça louca de tia Ana (que vivia, até então, bem tranquila com sua neurose). Disse que eu precisava arrumar um psicanalista para tia Ana ou ela teria um novo surto. E falou que, se precisasse, “ela iria junto”. Foi aí que tive a ideia.

Passei dias incitando tia Ana e o analista a fazerem uma espécie de teatro para tia Marta. Eles fingiriam que a louca era tia Ana, simulariam que estavam tratando tia Ana, quando, na verdade, a paciente seria tia Marta. Ficaram receosos e eufóricos. Toparam.

Na manhã da primeira consulta, as duas passaram tanto perfume que o analista ficou com o fígado atacado. Sei disso porque ele, que claramente não bate bem (não acredito em gente normal tratando maluco), me contou detalhes em um áudio, maravilhado com seu “début” no palco.

Lamentei não ter tempo de acompanhar o espetáculo de perto. E aqui não estou assumindo que sou uma mera voyeur de danos psíquicos (ainda que todos sejam). Estou apenas revelando minha infinita capacidade de amar qualquer grupinho de pessoas que tope fazer qualquer coisa diferente de tudo o que todos fazem todos os dias em todos os lugares.

O problema é que tia Ana gostou tanto da brincadeira que não conseguia mais parar de falar. Imagine uma senhora de 75 anos que nunca pôde dizer para a mãe, para o pai, para os irmãos, para o falecido marido e para o filho único (que foi morar em outro país com 19 anos e jamais retornou) como ela se sentia. Até porque ninguém nunca perguntou de verdade.

Tia Ana entuchava bolo com café no terapeuta, para que ele pudesse ficar mais alguns minutos; ia até o portão ainda matracando sem parar; quase entrava no Uber do homem, porque não tinha encerrado sua linha de pensamento, e perguntava se podia ligar à tarde caso lembrasse algum detalhe da história. Pedia que a sessão fosse três vezes na semana (porque, segundo tia Ana, observar andava fazendo muito bem para tia Marta, que não abria a boca sobre nada). Tia Marta começou a me ligar para dizer que a terapia de tia Ana estava indo tão bem que ela não precisava mais participar.

Tento então, com a ajuda do analista, convencer tia Marta de que tia Ana está querendo sair da terapia e que precisa muito que tia Marta faça de conta que aquela é sua sessão de análise. E que, para tal, tia Marta precisa falar uma sessão inteira. Prometo, em paralelo, que vou arrumar um horário com o analista só para tia Ana.

Em outro áudio longo e totalmente fora da casinha, o terapeuta me conta que já não sabe mais qual delas é a psicótica e que, na confusão de buscar a loucura, encontrou a dele. Diz que precisa de um tempo e me indica um colega.

Tia Ana vem sozinha até minha casa. Segura minhas mãos com firmeza: “minha filha, fale a verdade, fui eu que fiquei maluca e preciso de remédios, por isso vocês armaram toda essa história, não é isso?”. Eu confesso que já não sei mais. Tampouco se elas existem ou se eu as inventei.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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