Presidente russo é contra a democracia ocidental, com seus direitos universais e seu apego à liberdade de expressão
Um amigo, lá se vão alguns anos, separou-se da mulher, depois de meia década de união. De volta à ativa e já passado dos 40, o pobre se viu obrigado a encarar as novas danças, a nova música, as novas drogas e a mudança na etiqueta para lidar com as moças, todas bem mais livres e desapegadas do que antes.
“O mundo mudou muito, desde a última vez em que eu saí”, repetia ele, entre conformado e melancólico. A frase virou um mote para mim.
Meu pai tinha obsessão pela Segunda Guerra Mundial, meu primo mais velho, por Woodstock, e os garotos experientes, que eu, aos 14, ansiava beijar de língua, se miravam em Sid Vicious. Cada geração segue o espírito do seu tempo e é mesmo difícil aceitar que o mundo gira e a Lusitana roda para geral.
A queda do Muro de Berlim foi um divisor de águas na minha vida. Comecei a me entender por gente com a globalização, a abertura de fronteiras e a promessa do fim da história, crenças, hoje, ultrapassadas, diante do presente ameaçador.
Se a queda do muro pariu minha juventude, o comercial da Louis Vuitton, com Mikhail Gorbatchov no banco de trás de um carro chique, ladeado por uma bolsa da marca, foi a pá de cal dos meus anos dourados.
Que motivo teria o ex-premiê para virar garoto propaganda de uma grife de luxo, que não a penúria econômica e a perda do amor-próprio? O reclame era o atestado da humilhação da Rússia pós-perestroika.
Contratada pela Vuitton para clicar Mikhail, a fotógrafa Annie Leibovitz, não se sabe se intencionalmente, posicionou uma revista aberta sobre a valise exposta. Amplificada a imagem, é possível ler a manchete da página, impressa em cirílico, sobre o assassinato de Alexander Litvinenko —ex-oficial do serviço de segurança russo, naturalizado britânico. Envenenado por um isótopo radiativo, o polônio 210, Litvinenko acusou, no leito de morte, o então presidente Vladimir Putin de ter sido o mandante do crime.
Putin já estava lá, no rodapé do anúncio que deu cabo da minha ingenuidade juvenil. Putin é o ex-agente da KGB que testemunhou a divisão do butim da Guerra Fria entre oligarcas servis às multinacionais, enquanto aguentava calado a coleção de piadas de salão de Ronald Reagan sobre a ineficiência soviética e a gargalhada desabrida de Bill Clinton, diante de um Iéltsin borracho.
Contratada pela Vuitton para clicar Mikhail, a fotógrafa Annie Leibovitz, não se sabe se intencionalmente, posicionou uma revista aberta sobre a valise exposta. Amplificada a imagem, é possível ler a manchete da página, impressa em cirílico, sobre o assassinato de Alexander Litvinenko —ex-oficial do serviço de segurança russo, naturalizado britânico. Envenenado por um isótopo radiativo, o polônio 210, Litvinenko acusou, no leito de morte, o então presidente Vladimir Putin de ter sido o mandante do crime.
Putin já estava lá, no rodapé do anúncio que deu cabo da minha ingenuidade juvenil. Putin é o ex-agente da KGB que testemunhou a divisão do butim da Guerra Fria entre oligarcas servis às multinacionais, enquanto aguentava calado a coleção de piadas de salão de Ronald Reagan sobre a ineficiência soviética e a gargalhada desabrida de Bill Clinton, diante de um Iéltsin borracho.
Em 31 de dezembro de 1999, Boris pediu perdão ao povo e renunciou na TV aberta, indicando Vladimir como presidente interino. Empossado, Putin pôs em prática um projeto de recuperação do orgulho ferido da nação, reinstituindo o hino soviético e os valores tradicionais da cultura, sob a bênção da Igreja Ortodoxa.
Com punho de ferro, o novo czar perseguiu inimigos, mandou para a Sibéria os dissidentes, enquadrou oligarcas e enriqueceu, ganhando a aprovação de 90% do eleitorado e o direito de se reeleger indefinidamente.
Na política externa, agiu para barrar o avanço da Otan sobre os países da antiga cortina de ferro, ameaçando fechar a torneira dos gasodutos que abastecem a indefesa Europa. E investiu num novo eixo de poder global, ao lado da China e da Índia.
Vladimir contesta a tese de que a democracia ocidental, com seus direitos universais e seu apego à liberdade de expressão, seja o único modelo viável para o progresso e a civilização. Farto da soberba americana, ele trabalha para demonstrar a sua hipocrisia e fragilidade.
Assista a “Testemunhas de Putin”, no Canal Brasil; “The New Empire”, na Apple TV; e “A Arma Perfeita”, na HBO.
Em 2008, Barack Obama ordenou o primeiro ciberataque oficial da história, com um vírus desenvolvido por americanos e israelenses. O Stuxnet fez estragos no programa nuclear iraniano e abriu a caixa de Pandora para que outras nações armassem suas infantarias hackers.
Com códigos semelhantes ao Stuxnet —roubado da NSA, a National Security Agency—, suspeita-se que a central de inteligência russa não só invadiu os computadores do partido democrata, vazando milhares de emails da campanha de Hillary Clinton, como disparou o tsunami de fake news extremistas, a fim de acirrar a polarização nos Estados Unidos e, por tabela, no Brasil.
Ou seja, a vingança de Putin está por trás do livre nazismo do Monark e das convicções do tiozão do pavê bolsonarista do churrasco de domingo.
Messias visita o Kremlim, neste ano de eleição. Na América de Trump, o presidente brasileiro prestou continência para a bandeira americana; agora, se as tensões na Ucrânia permitirem, terá a chance de agradecer o empurrãozinho de 2018, cantando uma balalaica com Volodia, na praça Vermelha de Moscou.
O mundo mudou muito desde a última vez que eu saí.