Os Titãs levaram 150 mil pessoas em três noites de shows no Allianz Parque, em São Paulo, depois de terem lotado outras plateias no Brasil. Um fenômeno. Numa performance madura, potente, que nada deixou a dever a ninguém, a banda, em sua cidade, enfileirou hits da fase de sua formação histórica —infelizmente sem a presença física de Marcelo Fromer, que era parte significativa da alma do grupo, não apenas na música, mas na ecologia de sua identidade coletiva.
Os Titãs têm muitas particularidades entre os protagonistas da cena do rock brasileiro que explodiu na década de 1980. Já de início, a formação com 8 rapazes foge ao padrão –os Paralamas, outra referência, nasceu como power trio, sob a liderança, digamos assim, bem definida de Herbert Vianna.
Nos Titãs, a profusão de talentos e personalidades parecia uma receita improvável para o sucesso. No entanto, conseguiram equacionar as diferenças de interesses pessoais com inteligência, adotando um sistema decisório interno cujos resultados às vezes não agradavam a todos, mas dentro das circunstâncias funcionava.
Além das escolhas nem sempre pacíficas quanto ao repertório e das compreensíveis disputas de egos, se aprofundaram a partir de certo ponto algumas divergências sobre os caminhos que a banda deveria seguir.
Alguns pareciam inclinados a assumir um perfil mais nítido e hardcore de rock. Outros preferiam manter a ideia de banda de rock, porém com margem maior para relativo ecletismo –contemplando o reggae, a canção, o pop etc. Essa multiplicidade sempre fez parte da trajetória e da identidade da banda, mas também acabou por levar a projetos paralelos e, por fim, a separações.
O núcleo do repertório que está sendo apresentado nessa turnê é o suprassumo. Um festival de hits, com duas sequências de rock, entremeadas por um momento acústico.
Há rocks e rocks. O dos Titãs tem uma peculiaridade de certa forma paulista daquele momento, mais propensa, entre outras características, à influência do pós-punk. Sim, os baianos do Camisa de Vênus faziam um rock pesado, o Rio teve seus metaleiros e barões, e a paulistaníssima roqueira tropicalista Rita Lee tinha sua pegada geracional. Na sequência, o rock pesado dos mineiros do Sepultura alcançou êxito internacional.
Mas na primeira metade dos anos 1980, São Paulo teve um lance próprio bastante influente. Não por acaso, um dos lugares alternativos mais concorridos do Rio chamava-se Crepúsculo de Cubatão.
Os rapazes dos Titãs tinham idade para saber o que havia sido e ainda era a ditadura militar, mas também eram jovens que estavam olhando para a frente, ou talvez ainda mais para o presente, o tudo ao mesmo tempo agora —e já!.
Eram anos de crise de crenças e ideologias (“eu quero uma pra viver”, cantou Cazuza do Rio) em que se configurava o corte da pós-utopia, como sublinhou o concretista barroco Haroldo de Campos num famoso ensaio sobre o “poema pós-utópico,” publicado no suplemento Folhetim, desta Folha. Haroldo que, diga-se, certa vez foi de ônibus com os Titãs para um show no interior paulista.
Ainda estava quente a clivagem, na esteira do tropicalismo e da contracultura, que confrontava comunistas caretas e rebeldes anárquicos; dogmatismos militantes e diversão descompromissada; esquerda cultural “universitária” MPB e a turma internacionalista que usava drogas e se jogava nas festas ao som de rock e outros gêneros “alienados”.
Para fazer uma distinção esquemática clássica, lembrando Octavio Paz, duas bolhas se confrontavam (e também se comunicavam): a dos revolucionários à espera do futuro redentor, que encerraria a história da luta de classes, e a dos rebeldes do desejo, do comportamento e do aqui e agora.
Voltando a São Paulo. A efervescência daquele período de declínio encaminhado da ditadura e ao mesmo tempo de fadiga do populismo de esquerda se disseminava. Coube, nesse cenário, à Pauliceia, se não o protagonismo, ao menos um papel marcante na virada dos ventos.
E isso se viu da Libelu ao surgimento de um projeto de nova esquerda consolidado em crucial partido de trabalhadores; na retomada de Zé Celso e do Oficina; na campanha das diretas, na qual esta Folha se lançou sem hesitar, quando firmava-se a Ilustrada como principal caderno cultural do país (contando com os cariocas do Pasquim, mas também com Angeli, Glauco, Matinas Suzuki Jr. e a colaboração de uma nova safra de jornalistas e de intelectuais inquietos, com os concretos também, já não mais tão concretos, mas em plena atividade, e com uspianos como Marilena Chauí e Roberto Schwarz, para encurtar).
Assistia-se ao nascimento de novas editoras —como a Companhia das Letras, que logo se transformaria na mais relevante do país—, à emergência de fotógrafos, artistas e publicitários influentes, além de um circuito renovado de lugares para frequentar. Enfim, Fernanda Torres sabe muito bem do que estou falando —e outros e outras cariocas quentes também.
Os Titãs foram uma expressão musical paulista desse momento (ok, não vou esquecer de Arrigo e outras aventuras vanguardistas), que acabou por capturar um arco geracional para trás e para frente com uma potência que se traduziu no que vimos no último fim de semana na arena que se ergueu sobre o Parque Antártica, o velho Palestra Itália, que virou Palmeiras por conta da guerra –e foi, aliás, palco dos históricos bailes black Chic Show.
Não gosto de nostalgia, nunca fiquei lamentando nada. Vivi aquele e outros tantos momentos e a vida seguiu e segue. Acontece que os Titãs voltaram, e muito bem, afirmando uma justa permanência. Estão aí de novo.
Haveria muito o que falar sobre a originalidade e a poética construtivista e seca do repertório da banda, de sua ojeriza pela autoridade disciplinadora do Estado e de outras instituições. Divirto-me (“diversão, sim, é solução pra mim”) com a afronta de composições como “Igreja” (“Não gosto de padre, não gosto de madre, não tenho religião, não”) e com a atenção para um tipo de deslocamento social anti-produtivista e incômodo, em versos como “A mãe diz pra eu fazer alguma coisa, mas eu não faço nada” ou “porrada nos caras que não fazem nada” –e, ainda, “não vou me adaptar”.
Por fim, valeu a bandeira LGBT erguida no palco, feliz sinal dos tempos, e a reiteração de uma passagem de “Miséria”, nos termos da época, que continuam valendo, em que pesem os aborrecidos fiscais da linguagem: “Índio, mulato, preto, branco / filhos, amigos, amantes, parentes / fracos, doentes, aflitos, carentes / cores, raças, castas, crenças”… Miséria é miséria em qualquer canto… e a gente não quer só comida, quer comida, diversão e arte. Titãs, Titãs!