Oito e pouco da noite. Pronto para uma rápida viagem, ida e volta em menos de 24 horas, uma inquietação preenche os espaços vazios entre os pensamentos. Ela vai aprontar esta noite. Ele a observa do outro lado da cozinha, tomando um redbull de canudinho para a vigília ao volante. Ela está vendo um seriado, esparramada no sofá, dentro de um moleton cinza e velho. Os olhos fixos na TV, ele tem convicção de que movimentos rápidos das órbitas oculares dela verificam se ele ainda a está observando. Tchau amor, estou indo. Ele diz, enquanto esmaga a latinha para enfiar no lixo. Boa viagem querido, cuidado na estrada. Ela responde, levantando-se do sofá para, em uma rápida esticada até a cozinha, dar um beijo de despedida. Ele quase enxerga a felicidade oculta logo abaixo da feição despreocupada em seu rosto. Ela não vê a hora do meu carro virar a esquina, para arrancar este trapo cinza e se enrolar naquela roupa apertada que comprou logo que soube que eu precisava fazer esta viagem.
Ele pensou. Na garagem, sozinho, olhou o outro carro e concluiu que deveria ter colocado um rastreador. Uma ideia surgiu. Tirou um lápis de sua pasta e fez pequenas marcas em cruz no piso, sinalizando a posição dos pneus do veículo, de modo a demarcar com perfeição e discrição a posição exata das rodas. Como ela havia prometido que ficaria em casa vendo maratona de séries, esperando pelo retorno dele, ele saberia da traição assim que verificasse a posição das rodas. Não havia a menor chance dela tirar o carro e depois colocar no exato local sutilmente demarcado. Entrou no carro e foi embora. Tão logo virou a esquina, o terror invadiu os pensamentos. Uma série de pequenos trailers onde sua esposa era a protagonista dos mais picantes atos sexuais com desconhecidos e conhecidos. Um pesadelo que o mantém esmagando o volante até chegar ao destino. No dia seguinte, após angustiantes horas de retorno a velocidades superiores aos cento e vinte, ele enfim estaciona ao lado do carro de sua mulher. Ligeiro, verifica se as marcas em grafite no piso coincidem com as rodas. Nem um pouco! Nosso casamento não vai resistir. Entra se arrastando pela casa e encontra sua companheira prostrada diante da TV, no mesmo velho moleton. Você foi aonde? Ele pergunta seco. Oi amor, que bom que chegou antes. Tive que sair hoje cedinho porque estava louca pela torta de ricota da Gaspar. Mal consegui dormir de vontade. Ela justificou. O semblante sisudo dele se derrete em uma satisfação orgástica. Os olhos brilham, os cantos dos lábios se erguem. Ele abre a geladeira e encontra aquele prêmio dos deuses. A torta de ricota da Gaspar! Quando a garfada ainda com a geladeira aberta, encontra seu paladar, ele pensa que mesmo que sua mulher tivesse participado de uma orgia com o confeiteiro, ainda assim valia a pena.
Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto